in loco - cobertura dos festivais
Antiga Alegria (Old Joy), de Kelly Reichard
(EUA, 2006) por
Eduardo Valente Pequenos
momentos grandes
Não deixa de ser uma maneira de enxergar
as qualidades de um filme perceber todos os maus filmes que ele se recusa a ser
ao longo da sua duração. É um pouco este o caso de Antiga Alegria. O filme
começa na chave de naturalismo e enquadramentos de uma série de filmes indie
americanos banais sobre as relações amorosas e pessoais. Mas, logo veremos que
não é este o filme que Kelly Reichard quer fazer. Logo, quando o protagonista
sai com o seu carro e, ao ligar o rádio começamos a ouvir um debate sobre a situação
política americana atual, pensamos que pode ser mais um filme tentando encontrar
na vida dos seus personagens uma relação “metafórica” com o estado de espírito
americano contemporâneo. Não, também não é este o filme que Reichard quer fazer
– e os debates no rádio surgem apenas como um dado a mais, algo que localiza no
tempo e no mundo estes dois personagens, mas que nunca quer dizer nada sobre eles
além do fato de que eles estão vivendo num mundo que existe para além de seus
dramas pessoais. Continuamos
tentando entender, então, o filme que Reichard quer, afinal, fazer. O personagem
encontra um antigo amigo, e com ele parte numa viagem. Será um filme de reavaliação
da relação, da catarse de um fato escondido no passado? Não, não será. Logo que
eles acampam à noite, num faux raccord radical, surge um homem armado no
escuro: é um filme em que um fato violento vem quebrar uma narrativa naturalista?
Não, eram só os dois atirando em latas de cerveja com espingardas de ar comprimido
mesmo. Em seguida, os personagens saem a pé pela floresta, vagando no que parece
ser uma falta de rumo que nos remete a Gerry, de Gus Van Sant – seria então
um filme sobre os corpos e seu vagar, algo beckettiano sobre o caminhar sem chegar
a algum lugar específico? Hmmm, não, eles chegam ao lugar que procuravam. O
espectador afoito começa a ficar sem muitas opções, quando eis que... aha! Um
dos personagens começa a fazer massagem nos ombros de outro, que parece reagir
com medo no começo mas logo com relaxamento... É um filme que revela um passado
homosexual deles, e como este lado escondido os assombra e precisa ser resolvido
enquanto o protagonista está esperando o seu primeiro filho com a mulher e aí...
Hmm, não, era só uma massagem mesmo e a reação física do outro a ela. Mas, eles
voltam à cidade então, e enquanto o protagonista vai para casa ter com sua mulher,
o outro vaga pelas ruas, nos dizendo assim que se trata de um personagem marginal
e sem chão, que obviamente sofre pela sua condição de outsider e... ei,
aquilo é um sorriso no rosto dele? E ele parece estar simplesmente andando pelas
ruas? E surgiu o crédito de final na tela? E
assim Antiga Alegria termina, com a mesma calma com que começara, a mesma
calma que a trilha do Yo La Tengo projeta na tela o tempo todo, e sem oferecer
nenhuma das respostas fáceis acima que o fariam um adequado filme indie,
um adequado filme de arte ou um adequado filme comercial. Ele recusa todos esses
caminhos, e segue pela sua trilha bastante única e peculiar: um filme de encontro
entre dois personagens, a partir do qual vemos tanto traços do passado que viveram
(mas que nunca compreendemos em todos os detalhes, porque não é necessário), reflexos
sobre o momento que vivem, e acima de tudo a fisicalidade das situações que experimentam
ao longo da projeção. É um filme que quer remeter a todo o universo de vivências
envolvidas numa simples viagem de um dia entre dois amigos de vida inteira, sem
precisar em nenhum momento que nós as entendamos como eles, ou também para além
deles. Sua grandeza é a de filmar estes momentos com a simplicidade que
eles têm, sem querer chamar a atenção mais para si mesmo do
que para os personagens (que são, sim, o centro do filme), e ao mesmo tempo
dar a eles algo de épico, o sentimento que existe naqueles pequenos momentos
banais que sentimos possuir significação imensa em nossas vidas.
É
um filme, em suma, sobre uma antiga alegria, que até pode ser retomada, mas que
sempre se manterá antiga. E não há nada de errado com isso. Setembro
de 2007
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