in loco - cobertura dos festivais
O Lar (Home), de Ursula Meier (França/Suíça, 2008) por
Fábio Andrade A
ruína da intimidade
Logo nos primeiros planos
de O Lar, vemos uma cena bastante atípica: um garoto, com não mais que
dez anos de idade, divide um banho de banheira com sua irmã, já mulher feita.
A naturalidade da exposição de uma jovem mulher em sua nudez absoluta condensa,
naquela simples construção de cena, um sentimento de intimidade de força muito
particular. Estamos diante de uma família diferente, de fato, só que essa diferença
não corre por um caminho de excentricidades, e sim se instala em uma expressão
de naturalidade completa, de integração absoluta. É assim que esse núcleo de personagens
nos é apresentado e, nesse momento, já não resta dúvidas: há algo, ali, muito
precioso a ser conservado. Ao se isolar no meio do nada, essa família criara um
mundo autônomo (apenas o pai parece manter contato direto com o mundo “exterior”),
em uma casa onde as cortinas são desnecessárias e a dieta é regida por chicletes,
cigarros e pão com chocolate. E vivem, dessa maneira, em aparente felicidade.
Aos
poucos, descobriremos que essa intimidade seria fruto de uma das questões mais
antigas do cinema: o paraíso perdido. Se, ao menos, desde Robert Flaherty o cinema
serve como palco de reconstrução para um lar perdido irrecuperável (seja ele físico
– como na Terra de Ninguém de Terrence Malick – ou metafórico – como em
Cidadão Kane), Ursula Meier realiza, nesse primeiro longa-metragem para
cinema, uma ação desconstrutiva bastante surpreendente: partir dessa intimidade
conquistada, para a exploração de suas razões e motivações. Nesse sentido, o retorno
do paraíso perdido como espaço-questão de encenação proposto por Ursula Meier
estaria mais próximo ao realizado por M. Night Shyamalan em A Vila, do
que ao de sua compatriota e contemporânea Pascale Ferran, em Lady Chatterley.
Em vez de pensar o refúgio idílico como suspensão existencial, a realizadora o
encara como sintoma de uma angústia social anterior. Esse
conforto será ameaçado pela maculação do paraíso: uma estrada construída do dia
para a noite, cortando aquele infinito quintal de liberdade. Mais do que uma simples
interação entre mundos, a estrada servirá como espaço-potência onde serão projetados
os sonhos e inseguranças de cada personagem: motivo de excitação primeira para
o pai (Olivier Gourmet); território novo a ser explorado pelo aventureiro filho
mais novo (não há plano mais ilustrativo do que a pintura “indígena” feita com
o piche e a tinta branca da estrada); possibilidade de partida para a filha mais
velha (Adélaïde Leroux); fonte de paranóia higiênica para a filha do meio; e um
medo, tão estranho como presente (no que a câmera de Agnés Godard, e a construção
sonora fazem lembrar a inexplicável tensão de O Intruso, de Claire Denis),
por parte da mãe (Isabelle Huppert). Se, em um primeiro momento, as crianças marcam
o asfalto fresco com suas pegadas, logo o gato será preso a uma corrente, as janelas
ganharão cortinas, e os sentimentos serão amplificados pelo incessante ir e vir
dos automóveis. Mais
do que querer fazer um filme de personagens (algo que O Lar é, como poucos
filmes contemporâneos são) ou um experimento de desconstrução social, Ursula Meier
se mostra, nessa sua estréia em longa-metragem, realmente interessada naquela
situação como tecido cinematográfico. Pois se os atores geram personagens de fato
fascinantes, é a maneira como a realizadora mexe, constantemente, com a intimidade
estrutural de seu filme que faz de O Lar uma obra realmente notável. Assim
como o isolamento ameaçado serve como disparo para uma aceleração radical nos
arcos dramáticos de cada personagem, é ele quem determina a transição de gêneros
(da comédia colorida para o terror claustrofóbico à Possuídos, de William
Friedkin), a elasticidade do registro da câmera (absolutamente solta e móvel em
um primeiro momento, mas progressivamente estática quando o isolamento se intensifica),
a construção climática da banda sonora (com acertadas intervenções prematuras
que indicam, para o espectador, o descarrilamento que está por vir) e a reconfiguração
de signos e gêneros cinematográficos (da inversão do road movie¸ ao paroxismo
do kammerspiel). Se há uma aparência de experiência
laboratorial na trama de O Lar, ela é logo destruída pela fidelidade incondicional
da realizadora a seus personagens e situações. Todo paraíso perdido é, ao fundo,
resposta a uma condição anterior que precisa, de fato, ser confrontada. Em O
Lar, Ursula Meier usa uma casa e uma estrada para levar suas personagens à
vertigem da existência. E o faz com uma entrega – humana e cinematográfica – tão
palpável que, aos poucos, seu pequeno e livre filme mostra ter fôlego suficiente
para derrubar pares que, encastelados em conceitos e aparências, se escondem atrás
de paredes de papelão. Outubro de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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