ensaios
O Bonecão do Filhinho, episódio em
O Homem-Sanduíche (Er zi de da wan'ou),
de Hou Hsiao-hsien, Zeng Zhang Xiang e Jen Wan
(Taiwan, 1983)

por Daniel Caetano

O Bonecão do Filhinho é um dos três episódios que compõem O Homem-Sanduíche, filme que costuma ser apontado como uma das obras fundamentais para o surgimento de uma geração marcante do cinema de Taiwan, a chamada nova onda taiwanesa. Seja como for, à parte a importância histórica que se atribua a ele, esse pequeno filme de Hou Hsiao-hsien se torna memorável pela beleza da sua narrativa singela, com seu olhar atento para as dificuldades materiais e os conflitos sentimentais dos seus personagens. O filme parte do registro do cotidiano de um casal pobre que busca o sustento para si e para seu bebê, e faz um movimento final de notável força poética, no momento em que entra em jogo a relação de reconhecimento afetivo entre a criança e o pai.

Logo no princípio, sabemos que o jovem Kun-Chu - casado com Ah-Chu e já contando com um filho recém-nascido - precisa trabalhar vestido e maquiado como homem-sanduíche para receber um salário e poder manter sua família. Por obrigar o jovem pai de família a andar pela cidade travestido como se fosse um palhaço, este emprego é visto socialmente como algo humilhante, o que leva o rapaz a ter que suportar críticas e falta de respeito por parte até dos seus próprios parentes, além das gozações de grupos de crianças nas ruas. Essas dificuldades acabam por afetar o relacionamento com a esposa, com quem ele chega a ser agressivo, embora ela também trabalhe para colaborar com o orçamento; e afetam também a sua relação com o filho, que só o vê na rua ou quando chega do trabalho. No fim das contas, depois de todas essas dificuldades, Kun-Chu acaba conseguindo um emprego melhor - mas, ao aparecer sem maquiagem, ele já não é mais reconhecido pelo filho. O gesto final dele é simples e claro: ele não abrirá mão de receber o afeto do filho e fará o que for preciso para isso, mesmo que isso represente um disfarce.

É atraente a analogia entre este gesto feito pelo personagem do filme e o procedimento que o artista reconhece ser necessário para seu trabalho. No subúrbio de um país ainda muito jovem e pobre, como era Taiwan, Kun-Chu se transforma primeiro para poder sobreviver e se estabelecer; em seguida, ele o fará para ser reconhecido e ganhar o carinho do filho - tal como poderia ser um artista que se vê levado a trabalhar com máscaras e formas que o façam reconhecível. A ruptura marcada por este filme dentro do contexto local, dando origem a essa "nova onda", seguiu o modelo mais tradicional da chamada modernidade cinematográfica, em que tanto a narrativa quanto a visualidade buscam um tom realista. Dessa forma, o filme consegue traçar um retrato delicado da vida suburbana e ainda bastante pobre do jovem país, sem deixar de manter seu foco no enredo e nos sentimentos dos seus personagens. E, depois de todas as dificuldades, Kun-Chu consegue obter um trabalho mais digno e compensador; se for preciso usar uma máscara para que seu filho possa reconhecê-lo quando o vê, ele manterá o disfarce, porque seu trabalho pode se tornar cada vez melhor, mas ele não abrirá mão de ser acolhido com afeto. Há uma verdadeira afirmação de princípios nessa escolha.

Dezembro de 2010

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