in loco - cobertura dos festivais
O Gorila, de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2012)
por Thiago Brito
Limbo
O pesadelo de um homem é o pesadelo
do mundo. De tão aterrorizado, de tão perdido e
ensimesmado, o horizonte se turva e perde-se de vista tudo o que
está além das palmas das mãos. Afrânio
(Otávio Muller), dublador, descuidado, sofre com os dentes
e recebe o primeiro grande choque de sua vida: adeus McCoy, adeus
àquilo que lhe deu, por tantos anos, identidade, imagem
e segurança. Da noite para o dia, a vida de Afrânio
já não era mais aquela que ele conhecia, já
não era mais aquilo que era pra ser: mudou! Transformou-se
por completo - uma aventura despontou na esquina e seu chamado
é irrecusável.
O tempo que Afrânio demora ponderando se entra ou não
na aventura, os devaneios e criações que nascem
da procrastinação, é o tempo que estaremos
sentados no cinema. José Eduardo Belmonte estrutura seu
filme a partir da parcialidade, do pacto com as convulsões
e pesadelos de seu protagonista, de uma estrutura narrativa pautada
no imperativo do mergulho e da imagem do redemoinho. Mas não
apenas o mergulho de seu personagem - este é, na verdade,
até mesmo um mergulho inconsciente - mas um mergulho como
desafio estético: um mergulho para nós, espectadores,
jogados no epicentro do redemoinho. Sabemos tanto quanto Afrânio
e, nesse momento, viramos passageiros de uma tortuosa viagem na
qual, de início, pouco se entende o que realmente está
em jogo. Afrânio pega o telefone e se transforma no Gorila,
o sedutor de voz de veludo que surrupia telefones de mulheres
e passa horas enredando fantasias que, de tão platônicas,
não conseguem nem mesmo se realizar plenamente no plano
da fantasia: é quando as mulheres lhe querem carne e osso
que Afrânio chispa feito o vento, vira menininho e esconde
na saia, e nos sonhos, da mãe.
No entanto, as imagens volta e meia irrompem em
meio a sequências aparentemente banais, embaralhando tanto
a narrativa quanto a vida do protagonista. Afrânio está
com medo, sofre pesadelos terríveis, foge da vista de todos.
Com um ritmo que inicia calmo, silencioso, e vai atingindo um
climax ritmico quase tresloucado, o filme nunca abandona seu protagonista.
Quanto mais ele segue as pistas para reencontrar-se, mais as sequências
se tornam inusitadas, mais as imagens nos levam para novos espaços
e tempos. O redemoinho narrativo também se espelha na aposta
de calcar o filme em uma troca sucessiva de gêneros e referências
cinematográficos, sendo a imagem mais clara aquela de Um
Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, na qual a passividade
física de Scottie é transmutada na passividade e
crise emocional de Afrânio, cujo o prazer voyeurista é
levado para além da perversão ou tensão sexual,
e é recolocado como fuga - na qual, ironicamente, a idéia
do binóculo transforma-se na idéia do espelho refratário.
Quando
Afrânio imagina, quando Afrânio vê, é
sempre uma imagem refratada, que mantem sua vida afastada da realidade
criada por ele. A personagem de Alessandra Negrini, vizinha de
Afrânio, inicialmente com o codinome “Rosalinda”
(e é interessante ver o paralelo entre o filme, o conto
de Sérgio Sant’anna e o livro de estréia de
Santiago Nazarian, “Ovídio”, no qual também
temos Rosalinda, o embaralhamento, a crise do protagonista Ovídio
e até mesmo a transformação paulatina da
narrativa em gênero do suspense e mistério), começa
como uma imagem no vidro do prédio da frente, o que casa
perfeitamente com a política do Gorila de manter-se vinte
palmos distante de tudo e de todos. Mas a manutenção
da segurança e do mundo perfeitamente pragmático
e coordenado é negada ao nosso protagonista, e sua política
de prazeres irrestritos em um ponto de equilíbrio com a
vida é rompida terminantemente.
Cíntia, uma das mulheres que sofreram com
os encantos platônicos do Gorliia, resolve que está
na hora de vingar-se, ou pelo menos obrigá-lo a vir a seu
encontro. A perseguicão toma de assalto a vida do protagonista
e atinge fisicamente a própria estrutura narrativa. Somos
levados, então, para um thriller sem referências
mais concretas, e temos que seguir a viagem contando com as motivações
não muito claras de Afrânio. Por tanto tempo escondido
em sua casca, o mundo desvela aos poucos sua morada e obriga-o
a parir. Afrânio e seus dentes, o sangue escorrendo e Magda/Rosalinda,
a companheira, fã de McCoy, escondem alguma coisa. A procrastinação
de Afrânio chega ao limite de sua própria existência
e o filme corresponde com um esgarçar de sua estrutura
e imagem.
Aos poucos, tudo começa a se assentar,
e só termina quando Afrânio, sozinho, reconfigura
e reenquadra a perspectiva. Pois ele cuidou pouco de seus dentes
e, com isso, contraiu uma doença rara que o obrigou remodelar
sua boca. Isto causou uma modificação de sua dicção,
o que impossibilitou que continuasse fazendo aquilo que mais gostava:
dublar o detetive McCoy. No auge da negação, começa
a culpar sua mãe por não ter cuidado de seus dentes,
vendo nela o reflexo de seu próprio desespero, no qual
as imagens da mãe em depressão refluxam a um espelhamento
do vício em remédios do próprio Afrânio.
O filme é cuidadoso em nos manter em um estado de fluxo
suspensório, onde nunca é de fato claro o que se
pode configurar como um retrato real de narrativa: como tudo é
parcial e filtrado por Afrânio, somos mais é jogados
num mundo onde tudo é espelho, expressão, emoção,
sombras. O que está por trás é o trajeto
de um homem à sua condição atual. Ou melhor,
o momento em que Afrânio pára de correr para aceitar
seu novo mundo, ou condição de ex-dublador de McCoy
(em suma, resolver sua questão de identidade).
Belmonte
é muito cuidadoso quando se propõe essa travessia.
Pois, embora paute seu filme na idéia da identidade –
o que não é nada necessariamente diferente no horizonte
do cinema nacional – ele demonstra um real prazer pela busca
e acaba descartando uma proposta clara de destino. Isto é,
o que se reenquadra no final é a possibilidade de Afrânio
de se colocar essa questão. Não
vemos um renascimento, mas vemos um reenquadramento. O resto se
transforma em cotidiano, em “existir”, o que é
um aceitar um tanto sincero da vida. Depois de tudo, basta existir,
continuar.
No entanto, é extremamente significativo que o limbo do
protagonista de Belmonte tenha voltado ao primata para continuar
sua vida. Quer dizer, como tinha sofrido o baque inicial, perdido
sua perspectiva e se via confuso, sem saber como continuar, peregrinou
criando novas fantasias, vestindo a voz de sua origem. Podemos
pensar também na presença do macaco, do gorila,
em outros filmes contemporâneos, como o Tio Boonme,
que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, de Apichatpong Weerasethakul,
ou mesmo A Fuga da Mulher Gorila, da dupla Felipe Bragança
e Marina Meliande. Todos filmam a vontade da identidade, ou da
perda da identidade, de ritos de passagem e necessidade de transformação.
Assim, no fim da projeção, mais uma questão
salta ao nosso colo: seria o gorila o limbo do homem?
Outubro de 2012
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