sessão cinética
O Filho (Le
Fils), de Jean-Pierre e Luc Dardenne
(Bélgica/França, 2002)
por Juliano Gomes
Como
viver junto?
A filmografia dos irmãos Dardenne é
um dos marcos fundamentais da virada dos anos 90 para a primeira
década deste século, principalmente no que diz respeito
à construção de uma estética realista.
Entretanto, a criação do realismo nos Dardenne (que
em O Filho tem um de seus pontos mais altos) apresenta
uma série de dificuldades em relação a uma
idéia de "acesso direto"às manifestações
do mundo, principalmente por radicalizar certos procedimentos
formais ligados a um desejo de um "a mais" de realidade.
A primeira imagem de O Filho é escura, indefinida
e silenciosa. Não sabemos do que se trata em absoluto.
Há uma demarcação de princípios do
que virá no restante do filme: vamos acompanhar de perto
o personagem de Olivier. E só. Até o fim. Sem planos
gerais. E mesmo estando próximos, há uma série
de anteparos entre nós, já na primeira seqüência,
na qual somos jogados de súbito: vidros, paredes, portas.
Há sempre algo que impede o olhar completo. A proximidade
atrapalha, cria barreiras, restringe a visão. De perto,
o mundo parece quase abstrato. O cinema dos Dardenne parece ser
um cinema do possível. Há quase uma inadequação
entre cinema e mundo. Em O Filho, há sempre algo
que escapa, que não é mostrado, que não está
evidente mas está lá, no mundo, como presença.
O quadro é uma porção muito pequena do que
o filme mostra, e essa é uma de suas características
mais notáveis: construir esse mundo que não se dá
a ver mas que se pode sentir, se pode talvez tatear, mas que nunca
se mostra por inteiro. Essa inflação do fora de
campo não é nada metafísica.
O
ambiente da marcenaria ratifica ainda mais essa postura de "pesquisa
de materiais" que marca essa obra. O que importa é
o que ocorre com a proximidade, com o toque, com o contato. Como
contornar o desafio de não ter acesso privilegiado ao outro?
De estar perto e de nada saber? Ao final do filme, estivemos lá,
nos envolvemos, compartilhamos uma duração, mas
essa partilha não passa por saber o que eles estão
pensando ou sentindo. O realismo aqui é de uma alteridade
bastante radical, pois ao mesmo tempo em que ele faz tudo pulsar
diante de nossos olhos, ele não é completamente
filmável. Não é por acaso que sobram portas
se fechando aqui (como na seqüência inicial de Rosetta,
seu filme anterior, ganhador da Palma de Ouro em Cannes).
O Filho é um conto moral intensificado
por estados de suspensão que são construídos
através da incomum habilidade desses cineastas de modular
o espaço e o tempo, e de rarefazer o drama sem esvaziá-lo
ou exagerar na dose. Essa hábil carpintaria toma forma
no pacto que o filme estabelece conosco de acompanhar este personagem
e seus gestos durante todo o filme, com um interesse irrestrito.
A partir dessa condição, o ambiente, o mundo, vai
se construindo como um ser vivo, a partir de uma "música
das coisas", onde a marcenaria se torna o instrumento de
mais destaque. Toda a tensão vem do estabelecimento deste
conflito acerca do perdão e da perda, e de uma forma que
se engaja radicalmente nas coisas, em suas texturas, em seus sons,
respirações e atmosferas. É uma espécie
de moral das superfícies, onde só o lado de fora
nos é dado, pois a porta está sempre fechada - só
nos sobram estreitas frestas, e aí se expressa a ética
desse cinema como forma do olhar. Nos resta somente experimentar,
nos entregarmos a esta sucessão de fluxos quase caóticos
de espaço-tempo, para entramos no ritmo desses mundos-personagem
ou personagens-mundo (não se trata aqui de borrar as fronteiras,
mas de lhes estabelecer um vínculo absolutamente vital,
onde um se desdobra no outro permanentemente).
A solução possível não
passa pela compreensão, mas pela partilha, que tem sua
imagem síntese de maneira absolutamente literal no plano
final, onde os dois personagens seguram duas grande vigas e as
amarram, marcando ainda mais este desdobramento do drama na matéria.
Todo o tempo o filme quer criar laços que não passem
pela língua, pela lei, pelos contratos, pelo mundo das
instituições (seus filmes nascem justamente da crise
delas, mostrando quem mais a sente). A questão é
compartilhar um tempo. "Experimentar" quer dizer também
"fazer uma travessia". Todos os momentos onde não
há fala são para que este processo se dê,
para que escutemos as coisas e aprendamos com seus falsos silêncios,
com os gritos sem idioma de um motor, de uma serra. Esta é
a forma do seu realismo, da falta ou excesso, onde há sempre
um "a construir". E isso só possível a
partir de uma experiência de contato.
Novembro de 2010
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