Divã, de José Alvarenga Jr. (Brasil, 2009)
por Rodrigo de Oliveira

Auto-ajuda sem culpa

Específico que seja em todas as suas operações e aplicações do sem-número de estratégias de um certo “cinema popular” que tem se praticado no Brasil nos últimos anos, Divã não deixa de ser um ponto-de-chegada numa corrente de preocupações com o espectador e suas vontades, muito porque ele apareça aqui materializado pela primeira vez. O portador dessa persona é um psicanalista que nunca aparece, cuja única marca sensível é uma sombra sem voz invariavelmente filmada de costas, num consultório que é palco de teatro antes de qualquer coisa, mas que está lá, finalmente tornado imagem. Esse homem mudo é o vetor de todas as investidas solo de Lilia Cabral, onde a raiz dramatúrgica de seu discurso é justificada por um tipo bem cretino de profissional que “não fala nada”, deixando todo o falatório a cargo do paciente (uma deturpação da matriz lacaniana, uma vez que nunca ouviremos o retorno do psicanalista a partir daquilo que seriam as fissuras desse discurso).

O psicanalista é o grande catalisador da extensa narrativa que Mercedes tece sobre si mesma, esta narrativa não poderia existir sem sua presença, só se dá através dela, mas mesmo assim o psicanalista não exerce sobre esta narrativa qualquer poder: sua passividade é fundamental para o jogo, e se daria fora dali tranqüilamente (por que recorrer à psicanálise, quando o tratamento se parece tanto com um monólogo?). Divã é um filme sobre a necessidade quase desesperada de um interlocutor, mesmo quando não se faça a menor idéia de quem ele seja ou do que possa retribuir. Mas é preciso falar com ele. As metáforas para o espectador brasileiro estão assim bastante evidentes, mas a presença desse homem mudo e sem rosto ao qual, no entanto, está atada a busca de felicidade e sucesso da ficção, diz menos sobre o homem e mais sobre a ficção em si. Primeiro que Divã é um filme falado não porque tente esconder uma incapacidade de encenação (a essa altura não resta muita dúvida do talento de José Alvarenga Jr. para filmar comédias de situações, estão aí Os Normais, Minha Nada Mole Vida e alguns dos melhores filmes dos Trapalhões que não me deixam mentir). O livro de Martha Medeiros e a adaptação teatral na qual o filme se baseia fazem parte de um tipo recente de auto-ajuda que não se dá pela via do manual de sobrevivência, mas na colagem de pequenas crônicas onde o que se ensina aparece diluído numa torrente de “pequenas chaves da vida”, em que a suposta profundidade do conteúdo precisa necessariamente do caráter corriqueiro do relato.

E o que há de mais valioso em Divã é exatamente isso, essa impressão de que todo o discurso não passa disso mesmo, da verborragia de uma mulher extremamente consciente de suas próprias questões com o mundo, uma verborragia que define algumas de suas ações mais pragmáticas, mas que, no fundo, não tem lá nada de especial: questões “como as nossas”, problemas “como os nossos”, um filme que só se efetiva caso haja a mais tradicional das identificações e espelhamentos entre tela e platéia. Não por acaso, numa pequena cena nos créditos finais, Mercedes encontrará o psicanalista fora de contexto, na entrada de um cinema: ainda de costas, mas humano, finalmente. É quando Mercedes reconhece no psicanalista uma pessoa “como ela”, e assim se multiplicam as identificações. O filme termina com uma caminhada ensolarada e em câmera lenta da protagonista, rumo a uma afirmação pessoal ratificada por uma canção de Ana Carolina: ensinamentos se tiram de qualquer lugar (livro, peça, música cafona), mas que se caminhe voluntariamente até eles é o que parece valer. O trajeto mais comum ainda pode ser um trajeto digno de nota, uma vez que se saiba olhá-lo.

Para isso contribuem uma série de intromissões que Divã faz no imaginário dessa mulher-comum-em-crise, sobretudo no que diz respeito aos homens. Pelas vias milagrosas do braço financeiro da Globo Filmes, o filme pode responder a um “ai, eu quero largar desse homem chato e arrumar um Gianecchini pra mim” com o Reynaldo Gianecchini de verdade (e que o homem chato largado seja o galã-de-todas-as-horas José Mayer é outra das brincadeiras do filme). E a presença factual desses ícones da sexualidade masculina não deixa de atribuir à trajetória de Mercedes aquilo do qual toda a aproximação à auto-ajuda parecia querer se desviar: uma vez que se olhe de perto, a protagonista é tudo, menos comum. Não só porque tenha uma visão bastante avançada sobre questões ainda tratadas de maneira muito conservadora pelas vias tradicionais (digamos, as revistas femininas, programas de tevê e personagens de novela que dialogam diretamente com esse mesmo público), mas justamente porque essa autoconsciência contrabandeada das sessões de terapia torna sua história íntima demais, específica demais enquanto revelação de verdades próprias para que sejam tão facilmente admitidas como “lições para todas as vidas”.

E é desse ruído entre o sem-número de situações relacionáveis e as reações muito particulares que Mercedes tem a elas que Divã cria seu modelo de uma mulher que é tão verdadeira que só pode existir na ficção. Que o filme reforce o tempo todo que é esse o seu espaço, e que o trabalho do espectador seja menos o de trazê-la para fora dali, e mais de ocupar o espaço destinado a ele, espectador, lá dentro daquele universo, na figura ausente do psicanalista ou na figura transbordante de presença da protagonista, parece um desafio bem interessante de se propor – uma experiência real de troca de corpos, já que essa parece ser uma prática que agrada tanto nos últimos tempos.

Maio de 2009

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