sessão cinética
O Dinheiro (L'Argent),
de Robert Bresson (França, 1983)
por Fábio Andrade
Política
de relação
Em época atiçada pelo relativismo,
O Dinheiro - último filme de Robert Bresson -
clama por definições categóricas: trata-se
da obra-prima de um dos maiores criadores da ainda breve história
do cinema. Não deixa de ser sintomático, porém,
que o gênio de Bresson frequentemente escorregue entre os
dedos porosos das antologias e da taxonomia de afetos que coleciona
planos e trechos de diálogos como pequenas pílulas
do sublime. Pois, embora Bresson tenha sido um dos mais ávidos
pesquisadores da criação do sublime no cinema, o
brilho de seus filmes raramente transparece no esquartejo sistemático
que busca localizar com precisão onde a graça se
manifesta. Que a crítica e a academia não se culpem
pela violência por vezes necessária no contato com
as obras: O Dinheiro só faz provar que, como todos
os maiores filmes, sua força não está contida
em suas partes, e ela escorrerá incólume pelos cortes
deixados por qualquer tentativa de desmonte ou recomposição.
Citando o próprio Bresson, em um dos aforismos de seu Notas
sobre o Cinematógrafo: "Se uma imagem, olhada
à parte, expressa nitidamente alguma coisa, se ela comporta
uma interpretação, ela não se transformará
no contato com outras imagens. As outras imagens não terão
nenhuma força sobre ela, e ela não terá nenhuma
força sobre as outras imagens. Nem ação,
nem reação. Ela é definitiva e inutilizável
no sistema do cinematógrafo. (Um sistema não regula
tudo. Ele é o detonador de alguma coisa)". Mesmo em
seus momentos lapidares, como os caminhos estranhos que levam
à epifania na fala final de Pickpocket, o cinema
de Bresson é marcado por uma determinação
que impede a exclusão ou a desarticulação
da parte com o todo (os caminhos imprimem a necessidade de uma
trajetória, mais do que a teleologia do objetivo final).
O perigo de filmes tão incontornavelmente
íntegros como O Dinheiro é gerar justamente
a paralisia crítica, a afasia improdutiva de quem experimenta
o milagre, mas dele não consegue mais sair. No cinema de
Bresson, tal autismo seria ainda mais trágico: filmes como
Pickpocket, O Processo de Joana D'Arc ou Au hasard
Balthazar são justamente sobre personagens (ou, no
caso de Balthazar, sobre a encarnação literal
do sublime na presença de uma mula) que foram ao céu
e retornaram, que tiveram o momento de clarividência e voltaram,
em sequência, às trevas cotidianas.
E
aí chegamos a O Dinheiro - seu epitáfio
aparentemente apocalíptico e niilista - e percebe-se que
o que faz do filme uma obra-prima não é, como se
espera, seus planos, suas ações, seus momentos individuais.
Ao contrário, O Dinheiro é o filme definitivo
de Bresson por tematizar a política da estrutura de seus
filmes: assim como a decupagem e a montagem, o universo do filme
é regido por relações que, mesmo quando completamente
arbitrárias, determinam ações e reações,
e tiram seu significado do contato entre os pequenos
núcleos (as cenas, ou as pessoas). Diante da primazia de
seu protagonista-título, as personagens gélidas
e robotizadas têm suas ações comandadas pela
arbitrariedade conveniente das circunstâncias, à
medida em que o foco narrativo do filme segue passado de mão
em mão, como a nota que o protagoniza. O Dinheiro
é um filme não sobre personagens individuais, nem
sobre pequenas narrativas de vida, mas sim sobre esse personagem-sistema
que o dinheiro representa, e que impõe uma regra indistinta
e acrítica a tudo que a ele está submetido. "Filme
de cinematógrafo em que as imagens, como as palavras do
dicionário, somente têm força e valor pela
sua posição e relação".
Mas um sistema, lembremos, "não regula
tudo. Ele é o detonador de alguma coisa". E a nota
de 500 francos, como qualquer sistema, é ainda por cima
uma nota falsa - uma aparência de ordem e autoridade sem
qualquer lastro, forjada para se conquistar um determinado objetivo.
Ela é apenas o detonador de uma série de relações
aleatoriamente opressoras, que confinam as personagens a um esquema
deliberado de convívio e representação. À
primeira vista, tal fatalismo pode aproximar erroneamente O
Dinheiro de um outro cinema "de qualidade" francês
- para o qual a geração da nouvelle vague
tinha como o antídoto os filmes do próprio Bresson
- no qual a soberania do sistema de representação
eventualmente se transformava em tirania e automatismo. Mas Bresson
- criador de um conjunto de diretrizes aparentemente austero que
ele veio a chamar de "cinematógrafo", e que determinava
toda sua relação com a cena - não só
se dedicava a encontrar soluções formais (os procedimentos)
que respondessem apropriadamente à matéria de cada
filme (as cenas), como usava-o para propiciar que o mistério
se consagrasse. Sobre seus "modelos", escreveu: "o
importante não é o que eles me mostram, mas o que
eles escondem de mim, e sobretudo o que eles não suspeitam
que está dentro deles".
Se
O Dinheiro é também um filme sobre a própria
política de encenação bressoniana,
é inevitável que nele exista, também, algo
que foge ao sistema, algo de desconhecido que é detonado
por ele. É o caso de Yvon Targe, personagem de Christian
Patey, a quem acompanhamos ao longo de quase todo o filme, mas que
nem por isso chegamos perto de conhecer integralmente. Não
à toa, mais surpreendente do que a violência de seus
atos finais é a maneira como ele assume seus atos, entregando-se
às consequências que ecoam na ausência dos créditos
finais. Pois em um filme marcado pela rigidez formal interna e externa
à diegese, é no ato final de Yvon que encontramos
a síntese do pensamento de Robert Bresson: que não
aceitar jogar segundo as regras do jogo, que não deixar que
ela determine o seu futuro - uma vez que já determinou seu
passado e seu presente - e que, como o Bartleby de Herman Melville,
impor a política de quem prefere não fazer é,
no fim das contas, o atestado último e possível de
uma verdadeira liberdade.
Fevereiro de 2011
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