in loco
Diário de Bordo - Oberhausen, parte 1
por Felipe Bragança


Este é um diário de bordo, condensação de anotações diárias sobre a experiência de 7 dias em um dos maiores festivais de curtas-metragens da Europa – o 52º Oberhausen International Short Film Festival. O Festival é o mais antigo dedicado aos curtas-metragens do mundo, realizado desde 1954 – onde Couro de Gato ganhou um dos primeiros prêmios internacionais do Cinema Novo. Fui ao festival convidado como cineasta, com o filme Jonas e a Baleia (20 minutos), na Competição Internacional. A Competição Internacional contava em 2006 com 64 títulos selecionados entre os 4000 inscritos – além dos outros mais de 200 filmes apresentados nas mostras paralelas.

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Chegar a um festival como Oberhausen é ao mesmo tempo confortável e desafiador. De um lado, a ansiedade agradável de se saber das possibilidades de grande cinema nos próximos dias, de outro o sentimento de que esse espaço deve ser usado e pensado com a firmeza política e a intensidade estética que merece.

Oberhausen é parte de um conglomerado de pequenas cidades que somam mais de 4 milhões de habitantes. Tenho a impressão de que estou chegando a Queimados, Baixada Fluminense (onde, aliás, foi filmado Jonas...) ao sentir, à beira da estação de trem, o mesmo tipo de lógica de cidade dormitório para centros industriais com uma vida ao mesmo tempo urbana e provinciana... O contraste entre a ordem que vejo agora e a confusão fluminense, que me é tão comum, já é a primeira experiência cinematográfica da viagem: uma Baixada Fluminense alemã. Uma beleza triste nessa frieza industrial, nesses poucos prédios históricos, nessas casas de classe média confortáveis, nesses centros industriais abandonados. Parece que estou em Madureira. Mas não.

O cinema de Oberhausen é grande. Litchburg Palace. São 5 salas no centro da cidade, que normalmente exibem filmes do circuitão (em breve X-Men e O Código da Vinci) e que agora abrigam o Festival. Fotógrafos, tapete vermelho, essas doçuras de celebração estão todas lá. Eu estou com sono. Perdi 5 horas na vinda do Rio de Janeiro.

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Lars Henrik Gass, diretor do Festival, sobe ao palco. Seu discurso repete uma ladainha que aqui no Brasil já soa como um transtorno obsessivo: fala da necessidade do governo alemão perceber que o que é preciso não é o patrocínio pontual de eventos ou filmes de grande produção, mas a criação de um verdadeiro sistema de cultivo do audiovisual independente, de pequeno porte, pensado para um sistema público de salas de exibição e para novas formas de difusão de imagens como DVDs, internet e celulares. Afirma a necessidade de uma possibilidade de integração maior entre os festivais alemães e da criação de mais mostras itinerantes, que custariam menos e dariam mais retorno de público do que os filmes ditos “comerciais” alemães, ainda que com margem de lucro menor. “O fato é que os filmes comerciais alemães não são comerciais, coisa nenhuma: porque não conseguem publico...” Conhecemos essa historia.

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O primeiro programa do Festival já traz uma grande surpresa: City Scenes (de Zhao Liao) é um filme chinês de 33 minutos captado em DV e apresentado no Programa Urban Stories da Competição. É uma coleção de retratos em movimento da Pequim que se prepara para a Olimpíada vindoura. Um encontro entre uma dinâmica das vistas de Lumière com a observação gestual crítica (e cômica) de um Tati. O filme é uma coleção de gestos na rotina da cidade, com durações de 1, 2 ou 3 minutos cada, observados por uma pequena câmera digital – que cria uma sobreposição de tempos, de climas, de tons entre as diferentes rotinas da população. Todas coladas por um fade in/fade out sutil, e costuradas não como um crescendo simbólico ou narrativo, mas como uma flutuação de intensidades, mecânica como uma articulação de esquetes onde leves movimentos de câmera, zooms, ângulos, detalhes sonoros, comentam, chocam, fazem rir, encantam e se instalam na sala de cinema.

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Jonas e a Baleia tem 19 minutos, em DV. Subir até a cabine de projeção de um festival, ainda por cima numa imensa sala, é uma espécie de confessionário cinematográfico para nosso alívio. Aquele apinhado de máquinas nos lembra afinal de que tudo isso é feito e a projeção soa mais natural, mais possível. Um pouco menos de mistério, um pouco mais de calma.  Ali de cima, olhando pela fresta, é mais fácil o choque da imagem grande na tela, pela primeira vez. Está tudo certo com a cópia e a projeção é seguida de um dos melhores debates que já vi. Os alemães, curiosos, extravagantes, só não conseguiam concluir se aquele se tratava de um filme “experimental” ou um “melodrama". Uma militância pela experimentação como “gênero” que às vezes soa engraçada e ingênua. Eu não perco a chance de dizer que se trata de um melodrama, de um episódio policial. Achei a resposta mais “experimental” a ser dada.

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Eu tenho a clara impressão de que é no desvio por dentro dos gêneros, deixando-os difusos, quase irreconhecíveis, que se pode alcançar os desvios sutis mais enérgicos no cinema hoje. Penso no filme chinês: seria uma experimentação ou um compêndio de registros recriados como nos mais elementares filmes de viagem? Esse jogo com a tradição como referência para o enfrentamento parece ser algo incomum no olhar alemão, onde parece não existir uma massa de produção audiovisual local demarcada como cristalização, a ponto de se usá-la como referência. Liberdade e/ou vazio? O sentimento que tenho é que essa Alemanha reunificada pós-90 soa como um ornitorrinco indefinido entre uma cultura secular e uma adolescência cultural tardia, onde nada parece ser anterior à reunificação. Essa imediata falta de referências é livre? Ou essa neo-liberdade alemã não mina, justamente, o gesto primeiro de saber revisitar suas próprias imagens?

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No terceiro dia do Festival, foi promovido um encontro entre todos os cineastas, em uma espécie de coquetel tailandês – coisa simples. É a primeira vez que me misturo de vez com os cineastas presentes, afora as conversas rápidas de corredores. O carioca Rodrigo Savastano (que trouxe o seu Mestre Humberto) esta lá, entre drinques e comidinhas asiáticas. As conversas entre os diretores são ao mesmo tempo o que há de mais fútil e mais essencial em um festival – é uma espécie bizarra de tarefa a ser cumprida: conversar ao máximo com todos, trocar experiências como se fosse a última chance. Encontro dois italianos, um filipino, uma egípcia, um queniano, uma alemã que fala português. As possibilidades de idéias são muitas, as trocas de DVDs são intensas. Um festival é muito feito disso, desses estranhos coquetéis.

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Um homem baixo, professor de historia do cinema de Cambridge vem comentar sobre o Jonas e a Baleia e sentamos para beber cerveja. É impressionante como o Brasil (entidade mítica) soa sempre como um ícone misterioso para os olhos dos europeus: desde que pisei aqui, o “ser do Brasil” soa sempre como algo grandioso, confuso, distante e festivo. Não somos asiáticos, estrangeiros por excelência (como os cineastas chineses, ou iranianos): somos uma espécie de resquício mal-resolvido de civilização euro-centrada, uma confusa versão mundo bizarro de seus costumes. Não somos “outros” – somos “aqueles”, como primos distantes e engraçados... Essa aura que nos cerca é a primeira camada estética com que tenho que lidar aqui, driblar, provocar o tempo todo. Digo a ele que o Rio de Janeiro está em decadência, que faz uns 30 anos que a cidade está atolada no tempo com alguns espasmos de sobrevivência. Que a cidade é pobre, que a alegria impera como resistência única e que eu posso estar apenas de mau-humor. Mas e o carnaval? Mas e Ipanema? Não houve nada pior para minha cidade do que a maldita mudança da iconografia cultural carioca da região central da cidade para a praia de Ipanema. “Garota de Ipanema é uma praga...” Ele ri. Eu digo que é sério.

leia a parte 2 do Diário


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