O Arco (Hwal),
de Kim Ki-Duk (Coréia do Sul, 2005)
por Cléber Eduardo

O clichê Kim Ki-Duk

As imagens e as situações de O Arco levantam uma pergunta acerca da estratégia de Kim Ki-duk. As opções dramáticas e estéticas desse e de outros filmes seus (A Ilha, Casa Vazia) expressam uma forma pessoal do realizador em lidar com a linguagem cinematográfica, ou demonstram um empenho em buscar efeitos poéticos e metafóricos para atender a expectativa das platéias cults em torno do cinema oriental? Em suma, sinal de coerência ou sintoma de uma fórmula?

Vemos, novamente, os itens “Kim Ki-Duk”: um sujeito solitário cercado de seus mistérios, uma relação homem-mulher sempre pela metade, uma convivência entre romantismo e crueldade, desconforto, isolamento, autismo, tudo com poucas palavras e cenas de efeito plástico. Como nos dois outros filmes mencionados acima, O Arco nos introduz a um mundo estranho, de figuras enigmáticas, que se apresenta como fabulação, não como representação da realidade. Temos lá um velho e uma adolescente dividindo dormitório em um barco de pesca no alto mar, ambos calados (pré ou pós-comunicação verbal), imersos em um ritual de convivência que inclui um “número” de arco e flecha, com o qual eles prevêem o futuro de quem solicitar a previsão. Arco e flecha, masculino e feminino na concepção budista – símbolos, signos, soma semântico-religiosa, com certo fetiche na utilização de seus objetos cenográficos (o arco, o sapatinho, o colar), e fetiche ainda maior pela pele da adolescente (filmada de forma a termos com ela uma relação quase de voyeurismo).

Toda a “questão” do filme está na proteção-repressão do velho em relação à garota, no crescente desejo (sexual) da garota em conhecer o mundo (pelo sexo, inevitavelmente), na fúria dele ao sentir a ameaça de perdê-la para o continente, para outro homem, em um misto de desejo sexual masculino pelas formas jovens com paternidade terceirizada, numa variação de A Ostra e o Vento, de Walter Lima Jr – que, por sinal, é incrivelmente superior. O Arco nutre-se de simbolismos nem sempre decodificáveis, atrás da invenção de um mundo que, se pode ser indiretamente reflexo de um mundo fora-da-tela (pelos estados de ânimo do cineasta diante da sociedade coreana), concentra-se, acima de tudo, em um universo de prosa poética, sem preocupações com verossimilhança, mimetismo ou significação para além do encenado.

Não deixa de ser paradoxal a aposta incessante em uma trilha sonora de uma única música “orientalógica” – que, talvez pela repetição, adquire um alto poder destrutivo para os tímpanos. Se opta por apenas dar voz (pouca) aos personagens secundários, salientando o mutismo de seu casal de protagonistas, Kim Ki-Duk não parece retirar as palavras do par central por um desafio cinematográfico (o de expressar-se apenas com imagens), mas apenas para lhes dar tanto esquisitice minimalista performática como uma intimidade clandestina – diluída pelas imagens dos dois na hora de dormir, tipo de informação que apenas implode o mistério, a ambiguidade, para fincar bandeira na dicotomia. Uma dicotimia fabular e caricata entre as figuras do bem e do mal, restando à figura do velho (misto de tirano com titio) a única possibilidade de ambigüidade – mesmo assim apenas em alguns momentos, com maior número deles concentrados nos momentos finais.

Revelando ser menos um “compositor de quadros” e mais um catalogador de situações “singulares”, menos um escultor de imagens e mais um administrador de cenas-performances de arte, Kim Ki Duk precisa da música onipresente, porque, sem ela, o que ambiciona ser efeito lírico pode se tornar apenas patético. Já com ela, o que poderia ser patético, em vez de se tornar efeito lírico, torna-se o clichê de uma reafirmação constante de identidade estética reconhecível em festivais e circuitinhos. Não por acaso, nos letreiros finais vemos a assinatura, agora literal (“12º longa-metragem de Kim Ki-Duk”): o filme todo parece construído para se chegar à esse crédito do cineasta.


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