in loco - cobertura dos festivais
O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz (Brasil, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira

Pendurando um espelho

Um dos primeiros gestos de Violeta (Alessandra Negrini) após ter sido abandonada pelo marido é pregar um espelho numa parede. É natural se perguntar por que é que alguém, logo após um término repentino e traumático do casamento, se preocupa com o um ato um tanto quanto prosaico. A queda metafórica e o ato de se pregar o espelho, apesar de serem arcabouços para se erigir um conjunto de sensações, formam também (e através destas sensações) um fio simbólico daquilo que veremos se desenrolar numa noite de reconciliação.

Num primeiro momento, O Abismo Prateado irá se filiar a uma escola do cinema contemporâneo que passa por referências internacionais como, por exemplo, Hou Hsiao-hsien, Wong Kar-wai e Gus Van Sant. Acompanhando a rarefação da narrativa, o aparato irá se aproximar de uma personagem feminina para compreender o drama que ela vivencia, observando a maneira tal qual este drama se manifesta por sentimentos corporais e um conjunto de situações sensoriais. O repertório não é lá tão novo: primeiros planos em uma janela larga horizontalmente, com o fundo desfocado, numa câmera instável que persegue e constrói micros movimentos, e efeitos de luz das mais diversas naturezas, sejam em danças, caminhadas ou pedaladas. Por esta investigação da matéria do mundo e de seus ruídos, Karim Aïnouz faz vir à tona a cidade do Rio de Janeiro (na realidade, seu cartão postal, Copacabana), em uma mistura de postes e neóns estilizados com o lusco-fusco da praia vazia e dos quiosques que tocam canções de radinho - recursos que já se tornaram clichês do “cinema de arte”, mas que nas belas composições fotográficas de Mauro Pinheiro Jr. marcam certas cores com uma rejuvenescente vivacidade e interesse.

Estamos perante um universo carioca que é límpido e moderno, mas que em certos momentos irá sublimar até os espaços sujos. Os clichês do rótulo “cinema de arte” parecem até fazer sentido em um filme-encomenda que, tal qual Eduardo Valente escreveu em sua cobertura de Cannes, se tornou uma versão pocket do “estilo Karim Aïnouz”. Mas este sentimento pujante de abandono e perda irá aos poucos sofrer uma inversão. Em sua jornada pela noite carioca, passando por motéis, boates, aeroportos, e finalmente a praia, Violeta irá progressivamente se redimir consigo mesmo. Esta redenção não acontece por um momento epifânico que irrompe durante o curso da vida, mas, tal qual num tempo rosselliniano, cresce, lentamente, até se instaurar, sem que possamos reconhecer exatamente o momento preciso no qual acontece. Os germes deste movimento de redenção se encontram ainda lá atrás, no gesto prosaico de se pendurar um espelho na parede para fechar uma cicatriz, um gesto de espelhamento, de encontro com o duplo, que resume o que O Abismo Prateado parece apontar como solução para os recalques históricos (e não à toa, o tema contemporâneo é o abandono) que marcam os descaminhos do cinema brasileiro.

São citáveis, entre outros, pelo menos dois dados peculiares no Rio de Janeiro que Abismo Prateado constrói: 1) a taxista que leva Violeta de volta para casa é uma mulher; 2) na subida das escadas do banheiro, é possível se observar que o personagem de Nassir (Thiago Martins), um interiorano que vive de bicos e como motorista de van, usa sapatos (mocassins?). Estes fenômenos, que os moradores da cidade sabem ser um tanto quanto raros em nossa realidade, são também indicações. Não são vestígios para uma acusação de falta de verossimilhança ou de que o filme projeta no mundo a subjetividade de uma única figura, acusações críticas bastante levianas quando, em realidade, nada disto surge no próprio filme como uma questão. O que podemos efetivamente depreender destes detalhes é que o que O Abismo Prateado parece buscar em última instância não é tanto um encontro com o mundo, quanto um encontro de si mesmo no mundo. Quer dizer, não quer deparar-se, no mundo com um outro diferente, mas um outro específico com o qual, no fundo, pode se identificar - uma taxista ou um homem interiorano que também foram abandonos. São estes diversos encontros de pessoas que, numa noite de agonia, se acham pelas ruas, compartilham de um sentimento, e apaziguam um pouco os ânimos, se redimindo cada um consigo mesmo. Lançar-se ao mundo seria, assim, sair em busca desta identificação.

Nesta específica relação de espelhamento e identificação é que O Abismo Prateado executa sua própria mudança interna, da neurose ao apaziguamento, da derrota à aceitação, da queda à ressurreição. Violeta conhece uma menina e seu pai, ambos abandonados pela mãe, e reconhece neles também alguns de seus dramas. É o momento ápice de um movimento que já vinha se desenrolando, e que a impede de fugir de avião do Rio de Janeiro, permanecendo ao lado de sua família e retornando a um cotidiano comum. O Rio de Janeiro termina filmado da mesma maneira que no princípio – a única coisa que se transformou foi o sentimento de sua personagem.

Há uma inegável força no produto das estratégias de Karin Ainouz, sobretudo porque, em O Abismo Prateado, são marcas de estilo de um diretor experiente levando sua fórmula à perfeição. Até mesmo nos evidentes problemas de misè-em-scene, (principalmente nos diálogos em plano conjunto) encontramos apenas mais uma reticência indicando o quão este suposto “problema” é externo à obra. Internamente, o problema de encenação chega a ser uma qualidade intrínseca que se encaixa perfeitamente naquele universo. O que fica em suspenso, porém, é outra coisa. Por apontar um caminho evidente, e por ser talvez o filme mais afirmativo de Karim Aïnouz (nisto, nem mesmo Wong Kar-wai ou Hou chegaram a ser afirmativos), O Abismo Prateado pede um pouco mais de seu espectador. Cabe a ele decidir se o que encontramos no outro é realmente um espelho de uma parte de nós – e que, desta forma, nos redimimos vendo no mundo aquilo que já tínhamos em nós mesmos – ou se, contrariando o filme, há efetivamente um outro absolutamente diferente, pronto para o embate, que nos açoita mais do que apazigua e nos exige um bocado de transformação. Ir ao mundo para buscar o mesmo, ou ir ao mundo para buscar o outro? Assim, talvez O Abismo Prateado seja uma experiência necessária. Para acompanhá-la, ou mesmo que para negá-la.

Outubro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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