in loco - cobertura dos festivais
Nove Crônicas para um Coração aos Berros,
de Gustavo Galvão
(Brasil, 2012)
por Rafael Castanheira Parrode

O peso de um fantasma

No primeiro diálogo de Nove Crônicas para um Coração aos Berros, um casal de alemães conversa, num contraplano fixo, sobre a concretização de um trabalho que ambos deverão realizar na cidade de São Paulo. O homem fala sobre a culpa que sente por fazer parte desse projeto, que mais tarde saberemos ser a desapropriação de um grande prédio histórico abandonado, onde vivem várias famílias, que abrirá espaço para a construção de um grande empreendimento. A cena é ambientada na frente desse prédio, algo que, como veremos, fará parte de todo o processo pelo qual o diretor Gustavo Galvão irá construir as metáforas sobre suas personagens e sobre o mundo em que elas vivem.

O filme vai aos poucos se montando como uma espécie de filme-conceito, habitado por tipos desiludidos com a vida e com seus relacionamentos, inertes, impassíveis diante do mundo. Os planos são estruturados para fazer emergirem metáforas sobre os próprios personagens e seus estados de espírito. Para tanto, Galvão irá encenar todas as suas histórias em prédios antigos e desabitados, sempre enquadrando paredes descascadas, infiltrações, caixas amontoadas, uma biblioteca repleta de livros empoeirados. Essa necessidade de exteriorizar os conflitos das personagens através da construção espacial do quadro, com planos quase sempre fixos, parece vir direto das referências do cinema oriental contemporâneo, de Tsai Ming-liang ou Jia Zhang-ke. O grande problema deste Nove Crônicas para um Amor aos Berros, entretanto, está exatamente na sua dificuldade em enquadrar seus elementos sob a perspectiva emocional de cada um dos personagens, impedindo que eles se tornem de fato partes integrantes daqueles espaços. Por mais que Galvão tente estabelecer uma relação de organicidade entre seus personagens e os espaços habitados por eles, ela nunca acontece diante da câmera. Os personagens, monocórdios como são, nunca conseguem atravessar as limitações impostas pela exteriorização de seus sentimentos, e os espaços passam a ser limitadores desses personagens que parecem se calar diante dessa incapacidade de se projetar vida para fora dos corpos.

Nove Crônicas... é um filme que se ancora intensamente em dilemas existenciais e amorosos, de histórias de vida, de passados mal resolvidos, seres buscando algum sentido para suas vidas vazias e desinteressantes. Galvão cria personagens que parecem saídos de algum manual de psicologia, construídos com base numa espécie de diagnóstico clínico, representações clichês de um certo mal-estar da contemporaneidade. Essa impressão se amplifica na medida em que o diretor opta por filmar cada uma de suas nove crônicas como esquetes soltas, reforçando o tom episódico do filme.

Essas fragilidades parecem ganhar maior gravidade, uma vez que o tom teatral, reforçado pela montagem e pelo trabalho com os atores, aumenta a discrepância na diegese do filme. Os conceitos impostos acabam se tornando maiores que as próprias reflexões propostas por ele, e os espaços sufocam a possibilidade de os personagens se expandirem para além das ruínas que os rodeiam. Galvão, ao final, parece olhar para seus personagens com um certo desdém, um distanciamento desinteressado que reflete bem essa incapacidade de eles se expressarem ou serem expressos na tela. Nove Crônicas para Um Coração aos Berros parece sofrer de um enorme crise de identidade: tão consumado pelo excesso de referências, de idéias e procedimentos, pela possibilidade de se comunicar apenas com espaços, e nunca com os corpos, deixando seus personagens em segundo plano, previsíveis e banais. O filme escancara suas fragilidades, revelando seus alicerces fragilizados, sua estrutura em decomposição.

Novembro de 2012

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