Câmera de espelhos

Pendular, terceiro longa dirigido por Júlia Murat, tem um ponto de partida simples: um casal de artistas, aparentando entre trinta e quarenta anos, brancos, sem nome, divide espaço num galpão no centro da cidade do Rio. O filme vai de uma situação de equilíbrio inicial entre os dois, quando uma linha é demarcada neste amplo espaço, até o momento da crise da relação, dividindo-se em quatro capítulos. Pendular cria um jogo de ressonâncias e espelhamentos da situação afetiva do casal por meio de seus demais… CONTINUA

Das superfícies

Existe um paradoxo essencial no cinema de Olivier Assayas, uma dialética entre o aparente e o alegórico que encontra nos elementos culturais e na gama referencial de filmes como Espionagem na Rede (Demonlover, 2002), Traição em Hong-Kong (Boarding Gate, 2007) e este Personal Shopper (2016) norteadores emblemáticos de uma era. Essa bagagem de menções e apontamentos, através de uma conceituação do e pelo aparente ao mesmo tempo que assume tais elementos pelo que eles são – perspectivas tecnológicas em voga e premissas de um cinema… CONTINUA

Jovens mulheres

Seria meio automático associar imediatamente Sofia Coppola ter apresentado seu novo longa em Cannes ao fato de que, nesse mesmo ano, o Festival exibiu um filme cheio de energia, todo ele encenado em torno de uma personagem feminina jovem (interpretado por uma atriz desconhecida, deixando uma marca fortíssima na tela), que se sente perdida e um tanto desamparada num mundo em que tudo parece tornar mais difícil a sua simples trajetória em passar para aquilo que é considerado como uma “produtiva idade adulta” – trabalho,… CONTINUA

Dizem que sou louco

Uma ideia razoavelmente comum desde que o cinema se consolidou em sua vertente de arte narrativa é que os conceitos e a prática psicanalítica não apenas seriam aplicados muito bem como ferramenta crítica de análise de obras como de fato seriam ferramentas importantes para a escritura e construção de personagens na ficção. É verdade que essa relação entre arte narrativa e psicanálise está bem longe de começar com o cinema – afinal não é nenhum acaso que alguns dos conceitos fundamentais para a mesma venham… CONTINUA

Era uma vez

O que é “um filme de época?” Estritamente falando, a resposta não poderia ser mais simples: um filme que se passa num momento “real” do passado. Mas muito mais interessante pode ser perguntar: o que pode ser um filme de época? Se é considerada uma verdade universal a afirmação de que um filme sempre nos fala mais sobre o momento em que ele é realizado do que sobre o momento (seja o passado ou o futuro) que ele retrata na sua narrativa, o que nos… CONTINUA

Repetir ou não repetir: essa não é a questão

Principalmente na obra mais tardia de ambos, há algo de muito curioso que aproxima as trajetórias de Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho. Não se trata apenas do fato de que repetição não parecia ser uma possibilidade para eles: chama a atenção a maneira como os filmes iam reagindo uns aos outros, levando a desenvolvimentos e questionamentos internos onde cada resposta claramente levava a mais uma pergunta. Até por isso, nos cria uma perspectiva fascinante poder assistir 24 Frames, com a triste condição de finalidade que… CONTINUA

Palavras, palavras, palavras…

Em geral, os gestos mais facilmente reconhecidos como essencialmente cinematográficos envolvem grandes afirmações em termos de uso do aparato cinematográfico, tecnicamente falando: aquele filme feito em um único virtuoso plano sequência; aquela montagem elíptica radical; aquele plano que capta uma enorme paisagem; aquele movimento “nunca visto” da câmera. A ideia fácil de uma essencialidade cinematográfica se manifestaria em todo tipo de “originalidade” (atenção às aspas, por favor!) que imediatamente recebe o grito reconhecível da plateia: “isso sim é cinema!” (inclusive, algo que ouvimos bastante sobre… CONTINUA

Seguir respirando

Numa passagem de seu novo filme, Abel Ferrara começa a falar com entusiasmo sobre Paris, onde está sendo filmado naquele momento. Aí é perguntado sobre Roma, a cidade onde mora atualmente, e fala também das qualidades daquele lugar, finalmente refletindo que também gosta muito de Nova York. Afinal, ele conclui: “quer saber? O melhor lugar do mundo pra mim é onde eu estiver, simplesmente respirando.” Alive in France, título que parece remeter principalmente a uma brincadeira com a maneira como as bandas de rock costumavam… CONTINUA

Um certo olhar (no feminino)

Este ano o Festival de Cannes, como forma de celebrar os seus 70 anos, fez uma adição à sua mais que tradicional vinheta de abertura, na qual degraus saem do fundo do mar até o céu, e chegam na logomarca tradicional da Palma. Em cada degrau, foram adicionados nomes de cineastas importantes na história do Festival, de muitas nacionalidades e épocas. E, no entanto, por mais que o termo em português não tenha gênero, um chocante dado fez-se perceptível nas duas primeiras edições da vinheta… CONTINUA

As mãos do prisioneiro

É preciso aguardar até às últimas imagens de Os Bons Tempos Chegarão em Breve, de Alessandro Comodin, para se deparar com a evidência concreta de sua declarada homenagem à iconografia bressoniana: a mão do prisioneiro que segura na grade de sua cela. A influência anunciava-se de forma subreptícia aqui e acolá, mas com esta imagem final o mesmo gesto dotado de expressividade metafísica em O Batedor de Carteiras (1959) passa a ser uma menção mais frontal e evidente, um diálogo com uma determinada tradição cinematográfica… CONTINUA