Esse assombroso passado

Se hoje um criador precisa lidar com as lembranças de tudo que existiu antes no cinema, ele ainda pode contar com uma constante: o poder do fascínio da ficção, da necessidade humana de fabular, encontrando no cinema uma ferramenta poderosa pela maneira como consegue acessar um imaginário e fazer literalmente que se veja o mundo por outras lentes. Nesse sentido, poucos cinemas são tão informados pelo poder da imagem cinematográfica e pela mitologia por ela criada quanto o de Quentin Tarantino. E se isso é… CONTINUA

Projeções do real

Não é preciso nenhuma grande interpretação crítica, até porque tal fato está falado com todas as letras no testemunho de um dos entrevistados com maior acesso ao personagem-título de Diego Maradona: na combinação desses dois nomes havia na verdade duas pessoas diferentes com quem os próximos a ele precisavam se relacionar. E se não se pode dizer que a ideia dessa necessária separação entre “Diego” e “Maradona” não chegue a ser uma novidade (afinal, Pelé – sempre ele assombrando narrativas de Maradona – já falava… CONTINUA

“I am a passenger”

O hino à falta de controle sobre o destino proposto por Iggy Pop abre a primeira cena de La Gomera, novo filme do romeno Corneliu Porumboiu – e seu primeiro a ser exibido na competição de Cannes. A música acompanha a chegada do policial Cristi na ilha espanhola que dá nome ao filme: ali ele é um estranho e será transportado por uma história sobre cujas rédeas, logo vamos percebendo, não tem nenhum controle. A forma como o filme se espalha pelo tempo e pelo… CONTINUA

Estranho: modos de usar

Cada vez mais, o cinema que se costuma exibir nos festivais é marcado por um apelo ao realismo, seja na sua vertente mais radicalmente naturalista, seja numa incorporação de aspectos fantásticos típicos de cinemas de gênero, mas onde se exige responder a uma lógica dramática e narrativa em que a construção de personagens/seres humanos retratados deve seguir regras psicológicas que emprestem a suas ações algum tipo de racionalidade onde possam se espelhar os espectadores. Inclusive, possivelmente o mesmo pode ser dito até mesmo da lógica… CONTINUA

Os corpos possuídos

Ao contrário do que aconteceu com os três primeiros filmes que fizeram parte da cobertura de Cannes esse ano, onde os diálogos entre as obras pareciam propor caminhos muito claros, inclusive por serem parte da seleção de uma mesma mostra (a competição principal), os três filmes desse texto são bastante diferentes em quase tudo – até porque vêm de três mostras distintas: competição, Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica. No entanto, um aspecto que os atravessa de maneira transversal é a maneira como a… CONTINUA

Às armas, cidadãos

Não tenho lembrança da competição em Cannes começar com três filmes em diálogo tão claro e direto, entre si e com o mundo à sua volta. Vindos dos EUA, da França e do Brasil, os filmes de Jim Jarmusch, Ladj Ly e Kleber Mendonça Filho/Juliano Dornelles conversam não apenas pela chave mais fácil da incorporação dos códigos de distintos cinemas de gênero (filme de zumbi, filme policial, filme de ficção científica/ação/gore) mas principalmente pela forma como, ao propor um olhar absolutamente grudado no presente sócio-político… CONTINUA

A primeira pancada

Tamanha a estupefação diante da superficial profundidade do riso causado por Eugène Green neste curto – curto como um golpe – Como Fernando Pessoa Salvou Portugal, somente uma lenda pode introduzi-los, o filme, a gargalhada, a travessura custosa que é a poesia. Lembramos bem (grande parte de nós?) do monólito escuro de Stanley Kubrick à aurora da humanidade, do fantasmático ressoar de ‘Rosebud’ pelos corredores do império morto do magnata Charles Kane, da diabólica orquestração em agudos de pássaros assaltando uma cabine telefônica com uma… CONTINUA

Berlinale 2019 e suas despedidas

A sexagésima nona edição do Festival de Berlim, ou Berlinale, como é geralmente conhecido, certamente será marcada por um instante de inflexão na sua história. Após dezoito anos no centro dos holofotes da curadoria, Dieter Kosslick anunciou a sua despedida. Ficará à sombra e deixará de lado o chapéu, o cachecol vermelho e o bigode que legaram charme à sua marca visual. Como ocorre na maioria dos festivais de cinema de renome internacional – vide Cannes e Veneza – as direções artísticas são longevas e… CONTINUA

Os corpos gloriosos

Em “Plan contre flux”, um texto já clássico no estudo de dicotomias cinematográficas, Stéphane Bouquet fala-nos do cinema somático do “fluxo”, modulado pelo beat energético do plano-sequência, que captura os devires de um corpo; e um cinema (mais clássico) do plano fixo, do ponto de vista, da perspectiva universal, do cogito do sujeito do conhecimento. O cinema de Claire Denis sempre se inclinou mais para o fluxo, mas o acompanhamento de seus filmes por esses devires desregulados da matéria nunca lhe interditou o dever de coreografá-los, de… CONTINUA

Monstruosidade contraditória

O que são “as boas maneiras” referidas no título do filme de Juliana Rojas e Marco Dutra? A expressão é carregada de sentido irônico, ao qualificar determinado comportamento (“maneiras”) como bom (“as boas”), pressupondo que exista, em contraponto, um ruim. Sob qual ponto de vista estão “as boas maneiras”? Da dupla de realizadores? Dos personagens? Do espectador? Eis o primeiro enigma de um filme que, a partir de uma fábula de horror, desenvolve a complexidade de relações sociais num Brasil urbano de ares contemporâneos, onde… CONTINUA