Material, tenaz

Apesar do lugar de destaque que a obra de Frederick Wiseman alcançou neste século XXI – depois de mais de 50 anos de atividade e mais de quatro dezenas de filmes –, a recepção de sua obra ainda se dá em meio a bastante ruído. A fama de “cinema observacional” plasmada na imagem da “mosca na parede” da observação neutra acaba por nublar as principais armas de um dos maiores artistas de todos os tempos, não só do campo do cinema. Enclausurar Wiseman numa postura… CONTINUA

Capitalismo natalino ou Papai Noel anda de fusca, não de trenó

Em um trecho do livro Capitalist Realism: Is There no Alternative?, o escritor britânico Mark Fisher, ao perspectivar a relação entre cultura e tradição, encapsula algumas preocupações presentes em Esqueceram de Mim. Em referência a um ensaio de T.S. Eliot, o autor argumenta que ele “descreve a relação recíproca entre o canônico e o novo. O novo se define em resposta ao que já está estabelecido; ao mesmo tempo, o estabelecido precisa se reconfigurar em resposta ao novo. A alegação de Eliot era que o… CONTINUA

Em busca do afeto

A abordagem do espaço extraterrestre como ambiente fílmico é uma tarefa estética delicada, porque impõe aos corpos, que por ali transitam, uma invariável interação com um denso volume de percepção codificada. É uma paisagem impassível de ser subtraída dos significados implícitos de materialização da infinitude do desconhecido, assim como de tudo que um status representacional de tal ordem deposita sobre o sujeito ali localizado. Sedimentar significados sobre o “personagem espacial” se torna, pois, um jogo de negociação com uma bússola insuflada de iminência significante. Como… CONTINUA

A vida deles

A realização de um documentário sobre uma cidade pequena americana parece um passo natural dentro da trajetória de Frederik Wiseman, que, desde o início dos anos 1960, tem se dedicado a observar uma determinada instituição dos Estados Unidos contemporâneo, um filme depois do outro, seja a escola, o hospital, a universidade, o departamento de polícia, o zoológico ou biblioteca. Monrovia é uma cidade do Meio Oeste de cerca de 1400 habitantes, localizada no estado de Indiana. Pertencente ao distrito de Morgan, que em 2016 elegeu… CONTINUA

Névoa digital

Na história do cinema, poucos filmes se prestaram tanto à citação como Um Corpo que Cai. A proposta de A Névoa Verde de recriação do filme de Hitchcock de 1958 deveria ser, portanto, recebida com certa desconfiança, não fosse a estratégia singular adotada por Guy Maddin e seus colaboradores no projeto, os irmãos Johnson. Essa estratégia de trato com o filme baseou-se em uma série de escolhas determinadas. O primeiro passo foi o de reduzir Um Corpo que Cai a uma série sucessiva de motivos,… CONTINUA

Experiência-espetáculo ou A potência do Podrão

Em meio à aula, o professor diz: “(…) uma questão, talvez um risco, do espectador contemporâneo seja confundir experiência com espetáculo”. Imediatamente, vem à mente as grandes HQ’s cinematográficas da Marvel e os recentes filmes digitais-fantásticos da Disney – que nos últimos anos tem dedicado suas energias e recursos em comprar todo e qualquer empreendimento que faça sucesso (o que não é uma novidade) e em refazer os clássicos de contos de fadas totalmente em computação gráfica. No entanto, surge também uma dúvida em relação… CONTINUA

Nas garras do medo

A experiência do ser jovem no século XXI é indissociável da proximidade claustrofóbica com as mais diversas e espessas camadas de uma ansiedade imperativa sobre a tônica do cotidiano. Formar uma existência social enquanto juventude pós-digital implica construir aprendizado e mudança a partir de enfrentamentos e de negociações diárias com os impulsos de controle de um nêmesis pós-moderno. O preço do fraquejo é um abismo de identidade própria, que só costura unidade geracional pelos reencontros familiares com corredores sem fim, portas para salas escuras e… CONTINUA

Retrato borrado

Um retrato entrega vida e até uma certa eternidade ao objeto, mas também pode revelar fissuras, pontos fracos, e matar a entidade em cena. Quando Shirley Clarke, numa longa noite em dezembro de 1966, levou ao seu apartamento no mítico Chelsea Hotel o essencial de uma equipe de quatro pessoas, uma câmera Éclair NPR 16 mm, um Nagra e equipamento de luz para filmar o retrato de Jason, o propósito era confuso, pois havia uma motivação pessoal e uma ânsia artística em experimentar e esgarçar… CONTINUA

As transformações silenciosas

O díptico Equinócio de Primavera e Equinócio de Outono, exibido no Festival Ecrã, no Rio de Janeiro, introduz um novo tipo de estrutura na obra de James Benning. Quatro parâmetros geográficos são definidos para cada um dos seus planos de longa duração, mostrados na forma de cartelas: o horário, a temperatura, a altitude e a quilometragem de cada plano. Os filmes foram construídos no caminho de uma única estrada em Sierra Nevada, Califórnia, respectivamente no primeiro dia da primavera e no primeiro dia do outono.… CONTINUA

A espera, a predação e a escuta da História

Filmar a borda. Perfilar a margem. Curiosa, notável, a primeira sequência de Zama já sintetiza bastante da atmosfera que permeará toda a película de Lucrecia Martel. Vê-se o protagonista à beira de um larguíssimo rio. À espreita. À espera. Nada ocorre: ninguém chega, ninguém sai. Apenas Diego de Zama (Daniel Gímenez Cacho) lá permanece, imbuído da seriedade das suas vestimentas de um digno representante do rei de Espanha, meio abandonado, meio perdido nas regiões coloniais hoje próximas ao Paraguai. Realça-se um rio inóspito. Suas pedrinhas,… CONTINUA