… ma non troppo

O Banquete começa com um close up de uma planta carnívora comendo uma mosca em uma sala de jantar. A imagem difere ligeiramente do tipo de registro que pautará o restante do longa-metragem, porque se quer metafórica e premonitória, pronta a ecoar nos momentos seguintes do filme: o jantar é uma armadilha. Logo descobriremos o setup – uma mesa com oito lugares vazios frente a um enorme espelho, que servirá para, no reflexo, emoldurar e retirar de quadro sequencialmente as figuras que o adentram –… CONTINUA

É preciso acreditar

Chocante (2017) e Bingo – O Rei das Manhãs (2017) são filmes de nostalgia. Não existiriam sem a certeza de conquistar, com pouco esforço, uma parcela do público ávida pela máquina do tempo que a leve de volta a algum lugar do passado. Como máquinas do tempo ainda não foram inventadas, a arte criou seus dispositivos: ficções de ontem que não pretendem contar uma história, mas conjurar um espírito. Filmes que não estão nem aí para o drama ou a comédia. O que interessa, na… CONTINUA

Acorda, gravidade!

  “Acorda, humanidade!”: com esse grito imperativo começava a epifania do morador de rua em Superoutro (1989), o filme de Edgard Navarro cujo desfecho faz a ponte com seu trabalho mais recente. Eram justamente Abaixo a Gravidade (2017) as últimas palavras do protagonista, antes de se atirar do alto do Elevador Lacerda para um voo transcendental e simbiótico com Salvador. A mesma expressão apareceu novamente em O Homem que Não Dormia (2011) e agora se torna convite direto para um novo mergulho no imaginário de… CONTINUA

Desmedidas

“Resiliência” é um conceito originalmente desenvolvido na física para descrever as potências de certos materiais capazes de sofrer perturbações sem realizar ruptura. Nas últimas décadas, o conceito rapidamente se espalhou em outros campos científicos, como na ecologia, na psicologia e na teoria dos sistemas, tornando-se uma metáfora privilegiada para descrever a capacidade de certos corpos de sofrer tensionamentos sem se romper, acumulando energia para se recuperar depois da perturbação. O termo é apropriado pelo artista visual e sonoro mineiro Marcellvs L. para intitular o seu… CONTINUA

O animal belo feroz

Quando assistimos a sequência de episódios que compõe a saga da Leona Assassina Vingativa adentramos a particularidade do universo forjado no instante em que uma câmera amadora é acionada com o intuito de experimentar, através do registro em vídeo, outro modo de recriar aquela brincadeira de encenação já improvisada tantas vezes quando de bobeira pelos cômodos da casa, na companhia vespertina das amigas depois de verem juntas algum episódio de Maria do Bairro ou A Usurpadora. Nessa tarde, o registro será mais um caminho para… CONTINUA

Interrogar a vitalidade da fronteira

Categorias como “documentário” e “experimental” (ou “avant-garde”) pertencem àquela classe de palavras traiçoeiras, dessas que – na falta de precisão – é sempre bom evitar. Com elas, no entanto, acontece um fenômeno curioso: não há ninguém que assuma o fardo de uma definição exaustiva e cabal – e ninguém que não entenda o que se quer indicar quando as invocamos. E isso porque, embora uma tentativa de conceituação dispare um sem fim de problemas de natureza estética e filosófica, é fácil constatar que ambas formam… CONTINUA

A história oficial

Já foi comentado que o drone que sobrevoa a grama verde em frente ao Congresso Nacional no princípio de O Processo ilustra com uma indubitável clareza a cisão política que existia na população brasileira no ano de 2016, pondo de um lado um grupo de manifestantes vestidos de vermelho que apoiavam o governo da presidenta Dilma Rousseff e denunciavam o golpe, e do outro lado, manifestantes vestidos de verde-e-amarelo, a favor de seu impeachment. As primeiras sequências elaboram um pouco mais profundamente esta polaridade, mergulhando… CONTINUA

No meio do caminho

Em uma entrevista de 2012 publicada no livro El Otro Cine de Eduardo Coutinho, o diretor de Moscou diz que a obra em questão “é um filme que deu errado, mas eu considero ao mesmo tempo que tem um mistério interessante”. Essa caracterização de Moscou como um fracasso acompanha o filme desde seu lançamento, assim como, em diversos artigos, as palavras-chaves “incompletude” ou “inacabamento” ou sua dificuldade se comparada à aparente frontalidade de sentidos de seus filmes ao longo dos anos 2000. Passada quase uma… CONTINUA

3% e o triunfo do individualismo

As palavras do sociólogo francês Alain Ehrenberg expressam muito bem as potencialidades e os dilemas de 3%, a série brasileira distópica da Netflix, criada por Pedro Aguilera: “nós vivenciamos um fenômeno duplo: uma universalização crescente, mas que continua sendo abstrata (a globalização) e uma individualização igualmente crescente, mas que pode ser sentida de forma bem concreta. Podemos combater em conjunto um chefe ou uma classe adversária, mas como fazer isso frente à globalização?” Se na primeira temporada a trama era centrada nas competições desenvolvidas pelo… CONTINUA

O narrador

Arábia tem sido festejado por parte da crítica como o retorno do operário ao cinema brasileiro. O que singulariza o protagonista do filme no contexto do cinema feito hoje no país, no entanto, talvez seja menos sua condição de trabalhador de fábrica, que o fato de ser este um personagem narrador. Cristiano (Aristides de Souza) é um operário de uma indústria de alumínio em Ouro Preto que, convidado a contar “algo importante” de sua vida pelo grupo de teatro da fábrica, escreve em um caderno… CONTINUA