Da cosmética da fome à gentrificação da violência

Quando Ivana Bentes escreveu no Jornal do Brasil, em 2001, seu célebre texto sobre a “cosmética da fome”, certo cinema brasileiro de forte apelo comercial buscava explorar, sob novas vestes, territórios à margem da urbanidade burguesa – nomeadamente, os sertões e as favelas – que foram paradigmáticos na constituição da identidade do Cinema Novo. Segundo a autora, ao retomar alguns dos temas tratados no célebre manifesto “Eztetyka da fome” (1965), de Glauber Rocha, alguns filmes de meados dos anos 1990 e do início da década… CONTINUA

O específico está morto; longa vida ao específico

1. Moonlight é uma história em três partes sobre a vida de Chiron, um garoto que cresce em um bairro barra pesada sob o sol de Miami. O filme é baseado em uma peça não-montada com o belo título In Moonlight Black Boys Look Blue, escrita por Tarell Alvin McCraney, que, como o diretor Barry Jenkins, cresceu naquela região. No texto que apresentava a mostra de filmes curada pelo diretor para o Lincoln Center, em Nova York, Jenkins estabelecia um paralelo entre a estrutura de… CONTINUA

A vingança é um prato que se come frio

A década de 1970 no Brasil terminou no dia 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito – indiretamente, através de um Colégio Eleitoral – presidente. Tancredo era o candidato civil de um país que vinha sendo governado por militares desde 1964. Apelidado “Tancredo Never” pelo general de plantão, João Baptista Figueiredo, sua vitória representou epifania na história brasileira. A partir dali, tudo mudou para continuar igual, porém sob a égide da “Nova República”, que se encerrou na deposição definitiva da presidente Dilma… CONTINUA

“E a tempestade que faz dobrar os dorsos dos operários nas ruas?”

Ficcionalização – “Qual é a primeira pergunta para abrir um negócio?”, pergunta uma professora do Sebrae. – “O que a gente gosta de fazer?”, responde uma aluna. – “Não, isso é um erro, um equívoco natural. Todo mundo gostaria de fazer o que gosta. (…) O que você precisa se perguntar é: o que o mercado precisa?”, direciona a professora. Esse diálogo poderia naturalmente existir na vida real, em qualquer palestra sobre marketing, empreendedorismo ou novos negócios. Apesar de crível, esse mesmo diálogo, em uma… CONTINUA

“Em teu seio, ó liberdade”

Depois de duas cartelas, contextualizando a época da ditadura a um período fértil de filmes populares e eróticos, “chamados pejorativamente de pornochanchada”, o terceiro informe avisa que irá contar a história da década de 1970 através desse cinema. Ou seja, seu princípio será dos filmes como método, e seu interesse está na memória de um país e não no de sua cinematografia. Fica subentendido: isto não é um best of, mas uma investigação histórica dos costumes, “estrelada”, como dizem os créditos iniciais, pelos próprios filmes.… CONTINUA

“O silêncio cresce como um câncer”

Um senhor já idoso vive num pequeno vestiário travestido de barracão. Ali passa um barulhento trem, mas nem o alto ruído diário, nem a modéstia da casa o fazem voltar a morar com sua antiga família que em vão tenta abrigá-lo. O terreno é sítio de um campinho de futebol amador, paixão desse senhor já idoso. Enquanto, na substituição de um goleiro, vai imperceptivelmente ganhando um novo filho, sua rotina tem seus dias contados: a empresa dona do terreno cansou de “apoiar” o esporte e… CONTINUA

“Eu sou a lei, foda-se a lei”

De um lado, Corpo Delito lida com um dos temas mais urgentes do país – o sistema penitenciário brasileiro e sua burocracia burra e sufocante; de outro, toca de forma aguda num dos grandes dramas da condição humana – a restrição, neste caso, parcial, do livre-arbítrio. Ivan Silva foi preso. Depois de anos de cadeia e, supostamente, bom comportamento, ganhou o direito à liberdade condicional: trabalha na fábrica-escola e volta para casa de tornozeleira. Em sua rotina, não deve desviar desse trajeto. No primeiro diálogo… CONTINUA

“E uma pequena vos guiará”

Alguns alunos se metem a fazer um filme para um trabalho de escola. A filha pede a câmera ao pai, ele diz que não – “é um equipamento caro” –, ela faz birra. Sem jantar com o resto da família e sem a mãe conseguir convencê-la, o pai vai até o quarto e cede, empresta a câmera. Nunca veremos esse filme – apesar de, ao fim, sabermos que é genial – mas temos algumas pistas: ela vai ao encontro da diretora da escola, da faxineira,… CONTINUA

“Não adianta subir Bahia sem descer Floresta”

Subybaya abre, em sua primeira cartela, com o questionamento: “O que é ser uma mulher?”. Virginia Woolf, autora da citação, diz não saber. Este escriba está longe de saber e também tem dúvidas, assim como Woolf, se qualquer pessoa responderia tal questão com unanimidade satisfatória. Além do mais, não sei se realmente precisamos “saber”, visto que este saber aí está relacionado a uma compreensão catalogadora do termo. Há a concepção mais firme de Simone de Beauvoir de que “mulher” é uma construção – em geral… CONTINUA

“Na mão de favelado, é mó guela”

Baronesa, de Juliana Antunes, é um filme sem profundidade de campo. O que há para acontecer acontece, aqui, logo à nossa frente, com a cor barrenta do tijolo tampando o fundo, o mundo. O que interessa são estas duas personagens cativantes, Leidiane e Andreia, e como elas se relacionam com seus filhos, com Negão, com a comunidade. Perpassaremos quase o filme inteiro escutando suas conversas sobre banalidades, às vezes barra-pesada, mas invariavelmente coisas do dia a dia. É a palavra que abre as portas para… CONTINUA