Mas tinha que respirar

A presença do longa Café com Canela aqui no Festival de Brasília, especificamente disposto na mostra competitiva depois de Vazante e Pendular, provoca uma leitura de mudança de chave no cinema brasileiro. Independente dos seus méritos, os primeiros dois são filmes de fim de linha, de esgotamento de processos que chegaram ao limite. Não por acaso, o trajeto dos dois é marcado por grandes festivais europeus e coproduções internacionais. Eles carregam em si marcas de um processo de longo prazo, que tem em Terra Estrangeira… CONTINUA

Câmera de espelhos

Pendular, terceiro longa dirigido por Júlia Murat, tem um ponto de partida simples: um casal de artistas, aparentando entre trinta e quarenta anos, brancos, sem nome, divide espaço num galpão no centro da cidade do Rio. O filme vai de uma situação de equilíbrio inicial entre os dois, quando uma linha é demarcada neste amplo espaço, até o momento da crise da relação, dividindo-se em quatro capítulos. Pendular cria um jogo de ressonâncias e espelhamentos da situação afetiva do casal por meio de seus demais… CONTINUA

A fita branca

As mãos que escrevem este texto estão contaminadas por uma angústia que um filme como Vazante suscita. Se o filme escolhe falar de um episódio de 1821, sobre a terra encharcada de sangue da Minas Gerais colonial, esse sangue reversamente bombeia, como que por vontade própria, através dessas mãos que também não lhe pertencem, mas que aqui encontram morada, ou melhor: escoamento. Nessa torrente pontual, pedem passagem também conversas de corredor, memórias de um debate, e um contraste que me provocou uma imprevisível surpresa aos… CONTINUA

A imagem em jogo

O Inquilino (2010) é uma das obras co-dirigidas pelo cineasta Cao Guimarães com a artista visual Rivane Neuenschwander – parceria que inclui também trabalhos como Quarta-feira de Cinzas (2006) e a obra-irmã Sopro (2000). A diferença de titulação é proposital, senão propositiva: Cao Guimarães tem como marca de sua trajetória um trânsito entre a galeria e a sala de cinema – inclusive com uma produção frequente (e de altos e baixos) em longa-metragem; já Neuenschwander tem, no vídeo, matéria de uma fração delimitada de sua… CONTINUA

Do Chile para outro lugar

“Marijuana ou morfina?”: esta era uma das piadas de Pablo Neruda, ao receber os amigos. Em vez de potes com as inscrições de “sal” e “pimenta”, colocava no saleiro e no pimenteiro as palavras “maconha” e “morfina”, como se oferecesse drogas pesadas, que ajudassem na digestão. Passam-se os anos, Neruda morre e o corpo foi exposto em uma de suas casas – aprumado, de terno, no caixão. A poucos passos dali nascia a noite chilena, que havia recebido Augusto Pinochet doze dias antes, em setembro… CONTINUA

Sobre medalhões e excluídos

Antônio Pitanga viveu a Nova Era no cinema brasileiro. Nascido em Salvador, 1939, o fato lhe garantiu um batizado cósmico: estava no lugar certo, na hora certa. Anos depois, no meio de uma turma de loucos, sob as bênçãos do crítico Walter da Silveira, abandonou o sobrenome seco, o sobrenome comedido, o sobrenome funcionário público – um mero “Sampaio” – pelo “Pitanga”. Da árvore frondosa e carnuda, tropical como todos deveriam ser. Se Oswaldo Massaini produziu O Pagador de Promessas (1962), na Boca do Lixo… CONTINUA

Baudelaire e o Diabo na terra da praia

Lívido (Pedro Henrique Ferreira) tem o corpo desconjuntado, o coração empedrado, a alma atormentada: um vulcão guardado sem manejo de suas lavas reprimidas. É um personagem anacrônico e deslocado ao pé de uma juventude afetiva que jamais olharia para uma Igreja com seus grandes olhos vidrados, cheios de indiferença e curiosidade. Um Homem e seu Pecado é menos sobre o incesto em si do que sobre o pecado como reação ao mundo. Um affair, a cidade cartão-postal, o trabalho, os amigos no bar, o hobby… CONTINUA

Dissidências do poder

No Brasil as coisas mudam, mudam, até que… continuam no lugar. Parece que descobrimos isso ontem, enquanto repensávamos nosso ódio exclusivo à classe política com aquela pequena câmera amadora, num plongée com ponto de fuga “errado”, a filmar Marcelo Odebrecht em mais uma delação premiada – raiva canalizada que estremeceu em definitivo com o grande golpe do áudio de Joesley Batista “para cima do Brasil”. Mas, em 1962, Tocaia no asfalto já demonstrava que “a chaga da corrupção” não passa de um pacto e, como… CONTINUA

Imagens contra a rua

Existem imagens que gritam. Existem outras, não menos fortes, estridentes, ou inquietantes que conotam silêncio, introspecção. Presentes numa mesma sessão, os curtas Nunca é Noite no Mapa (2016) e Na Missão, com Kadu (2016) possuem um precioso ponto em comum: em ambos a câmera em punho transforma-se num gesto de resistência possível. Mais do que isso: são filmes alinhados a movimentos sociais por reivindicações de moradia e resistência contra a gentrificação, como o Estelita, em Recife, e o Izidora, em Belo Horizonte. É pela câmera,… CONTINUA

Formas da deriva

Rever Aloysio Raulino hoje é descobrir um continente inexplorado. Sua obra como diretor é, ao mesmo tempo, um inventário de figuras singulares do povo, esse emblema tão duradouro na história do cinema, e um manancial exuberante de pensamento cinematográfico. Entre os habitantes desse continente (que tantas vezes teve um epíteto: São Paulo), destaquemos três: Deutrudes Carlos da Rocha, baiano, lavador de carros na periferia; Arnulfo Silva, o Fenômeno, escravizado quando criança, hoje “físico orientador da paz de espírito universal”; Rosendo, jovem trabalhador paraguaio, que vem… CONTINUA