A espera, a predação e a escuta da História

Filmar a borda. Perfilar a margem. Curiosa, notável, a primeira sequência de Zama já sintetiza bastante da atmosfera que permeará toda a película de Lucrecia Martel. Vê-se o protagonista à beira de um larguíssimo rio. À espreita. À espera. Nada ocorre: ninguém chega, ninguém sai. Apenas Diego de Zama (Daniel Gímenez Cacho) lá permanece, imbuído da seriedade das suas vestimentas de um digno representante do rei de Espanha, meio abandonado, meio perdido nas regiões coloniais hoje próximas ao Paraguai. Realça-se um rio inóspito. Suas pedrinhas,… CONTINUA

Manipulação, modos de usar

Le Livre d’Image começa e termina com imagens de mãos. Godard nos indica no texto que acompanha aquelas imagens acreditar que é com esta parte do corpo que o homem pensa – igualando, portanto, a ação com o pensamento, pois apenas a partir da ação o pensamento se consuma. E não qualquer ação, mas a “manipulação”, efetivamente. Manipulação que é, antes de tudo, a de Godard mesmo (junto a seus colaboradores, porque há pistas em quantidade que indicam o quanto figuras como Fabrice Aragno, Nicole… CONTINUA

O lugar do “lá”

Em crítica, fala-se comumente em efeitos de fora de campo, retórica destinada a ativar na cabeça do espectador a ideia, sugerida embora, de que ao campo preexiste sua alteridade incomensurável, de natureza tópica (a equipe, a câmera de filmar) ou transcendental-significativa (a Memória, o Imaginário): a pontualidade ou vastidão do fora de campo desvelado vai decidir em geral da grandeza do filme; pensemos, por exemplo, em thrillers, neste travelling dianteiro que progressivamente vai se aproximando do corpo a quem segue, na noite alta; não é… CONTINUA

O mundo desde o fim

No trato com o romance de Antonio di Benedetto, há uma omissão significativa em Zama. Já na jornada final, quando o destacamento reunido para a caça do bandido Vicuña Porto se depara com o grupo de índios conhecido como “os cegos”, di Benedetto invoca uma anedota marcante. Depois que a tribo inteira tivera a visão extirpada pelos inimigos, os homens e mulheres encontraram uma insuspeita liberdade na mutilação: em terra de cego em que não há sequer um caolho, todas as convenções tradicionais são, de… CONTINUA

Espelhos do poder

Terremoto Santo é possivelmente a manifestação mais desconcertante da pesquisa atual dos artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Conscientes da função apaziguadora que uma certa ideia de cultura popular ocupou na formação dos imaginários nacionais e regionais, e ao mesmo tempo muito sensíveis às ambivalências políticas do cinema e da fotografia etnográficos, os artistas têm se lançado a um questionamento das formas de visibilidade do que chamam de “corpo popular”. A pesquisa tem resultado em um conjunto notável de filmes de curta duração, inicialmente… CONTINUA

Nada é provisório

O golpe civil-militar de 1964 promoveu uma mudança paradigmática no tipo de cinema produzido pelos cinemanovistas. Dentre as muitas manifestações que surgiram a partir de Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) ou Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962) até o catedrático ano, a perspectiva do grupo se aproximava de cenários da pobreza (como o Nordeste e a favela) e, em paralelo, defendia a autoria e a originalidade estética do movimento, tão bem descrita por Glauber Rocha… CONTINUA

A lírica do exílio nos filmes de Leonardo Mouramateus

# What the hell am I doing here? O escape. Vazar. Dar no pé; sair fora. Os primeiros curtas-metragens de Leonardo Mouramateus retratam anseios como esses, nos quais seus personagens aspiram por terrenos bem distantes. Mauro em Caiena (2012) já sugeria algumas pistas. Em over, a voz do diretor evoca uma carta a um tio que fugiu dos “prédios feiosos de Fortaleza”, embrenhou-se clandestino pela Amazônia, tornou-se um imigrante ilegal, um refugiado. Nem aqui, nem lá, e ainda por voltar – a passar por um… CONTINUA

O bullying nosso de cada dia

Filmes sobre transições adolescentes são quase todos iguais. Principalmente os ruins. Lá pelo início dos anos 1980 o cinema norte-americano esquentou a fórmula, repetida ad nauseam, e um bom marco talvez seja Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984), de John Hughes, ornamento da Sessão da Tarde. Claro que ressalvas existem: o brasileiro As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodansky, e o mexicano Depois de Lúcia (Después de Lucia, 2012) trabalharam velhíssimos dilemas com criatividade e filiação à causa. Mesmo Hughes inventaria, em 1985,… CONTINUA

Crônicas de Tiradentes: 5. Jogos de cena – a forca e a força da autoria

A) A forca da autoria Um plano zenital mostra uma mulher com seu bebê recém-nascido. Ela parece exausta, atônita, pode-se até mesmo questionar se não estaria morta. Um pequena morte sobreposta a uma nova vida. Momentos depois esta mulher irá afogar esta criança num riacho, observada à distância pela câmera, até sobrar apenas o lençol branco que cobria o bebê flutuando na água, como uma tela em branco encharcada de significado. Rebento, de André Morais, faz desse mote sua narrativa. Esta mulher caminha. Não se… CONTINUA

Gesto fundamental

Não dá para falar de Bandeira de Retalhos sem passar pelo violão de seu diretor. Na verdade, não dá para falar da história da arte moderna no Brasil sem ir a ele. Violão perdido, porque, arremessado com justiça a uma plateia estúpida, foi rebaixado a gesto desvairado dum artista em fúria. Enfurecido Sérgio Ricardo estava, ali no 3o Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967, pois o mimado público o impedia de tocar “Beto Bom de Bola” por puro fricote de querer ouvir… CONTINUA