O Brasil está morto. Viva o Brasil.

Dirigidos respectivamente pelo cineasta mais experiente desta edição e por um grupo de jovens experimentadores presentes à 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Sertânia, de Geraldo Sarno e Canto dos Ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros, mantêm entre si algumas ressonâncias que não me parecem completamente desprovidas de sentido e orientação. Liberados de toda a lógica do “eterno ensaio” (aquela que vive de suspirar: “um dia o cinema brasileiro chega lá!”) ou da “Retomada” (“agora vai!”), estamos diante de dois filmes que circunscrevem… CONTINUA

Mangue fértil

O cavalo é, para Jung, um símbolo para o inconsciente; para as tradições afro-indígenas, ele representa aquele ser passível de incorporação, médium. Cavalo é, assim como o animal-símbolo que evoca, um filme no qual a montagem se realiza a partir do fluxo do inconsciente. Sendo o primeiro longa-metragem finalizado desde a implantação de editais de longas com arranjos regionais, ligado à Ancine,  no estado de Alagoas, Cavalo é um pronunciamento obstinado sobre a busca de compreender as ancestralidades que compõem o microcosmo alagoano em diálogo… CONTINUA

Esconde-esconde

Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito se dá por um inusitado fio de enlace entre o dito e o não-dito. À primeira vista, as pistas estão todas aí: o filme retrata o acompanhamento da festa das Yãmiyhex na sua periódica visita ritual aos Tikmũ’ũn que residem na Aldeia Verde (Apne Yixux). Se o ponto de partida ainda soar distante, não há problema, a história de fundação das Yãmiyhex será narrada e reencenada pelo prólogo que abre a obra. Essas mulheres-espírito são evocativas do momento de conflito decisivo… CONTINUA

Abismo fugaz

Em um plano abertíssimo uma mulher finca-se, de pé, sobre um banco. Um homem, forte, descamisado, dotado de uma masculinidade proeminente, abraça-a em um gesto similar ao do enamorado Pigmalião, que envolve Galatéia, sua escultura-musa em um enlevo tão romântico que transforma pedra em vida. É nessa atmosfera inebriante, mas austera, que se passa o longa-metragem Natureza Morta, de Clarissa Ramalho. O filme completa, com uma diretora mulher, uma trilogia iniciada por Djalioh (2011) e Paixão e Virtude (2014), ambos de Ricardo Miranda – o… CONTINUA

Disjunção larvar

A sinopse deste filme cearense-carioca diz: “Duas amigas monstras decidem seguir rumos diferentes. Décadas depois da despedida, Naiana (Rosalina Tamiza) é professora do ensino médio em uma pequena cidade litorânea, onde um hotel em reforma emana estranha presença. A três mil quilômetros dali, a noite devoradora envolve Diego (Maricota)”. Aí já está colocado o jogo de distâncias e paralelismo que compõe o filme. Começamos com o passado das amigas, depois a história se bifurca e se une no encontro final, nesta espécie de “romance de… CONTINUA

Organizando na desordem

É curioso notar como Cabeça de Nêgo articula elementos que orbitaram algumas conversas recorrentes desde o início da Mostra. A começar pela pedagogia que cada obra propõe quando lida com os temas políticos, tocando os nervos de um momento em que o Estado brasileiro se retira de seu papel educacional e promete perseguição aos que insistirem, seja na arte ou na sala de aula. Também o exercício de retrabalhar inventivamente os gêneros cinematográficos existentes, nesse caso o do filme teen, enquanto um espaço criativo, mas… CONTINUA

Retenção do resgate

Pão e Gente propõe um jogo de forças muito particular entre as dinâmicas vividas por um grupo de teatro ao reencenar as relações de trabalho cotidianas numa vila paulista e a maneira em que essa reencenação teatral se desdobrará em matéria de cinema. Os espaços de uma padaria, uma banca de jornal e um beco sem saída serão explorados pelos atores na interpretação de textos brechtianos, através da desnaturalização dos vetores capitalistas na lógica de funcionamento desses espaços, sob a ótica do trabalhador que nada… CONTINUA

Sob o peso do próprio olhar

Na edição de Tiradentes de três anos atrás, Victor Guimarães escreveu um ensaio sobre uma incômoda veia do cinema jovem que então despontava. Nomeada pelo crítico de gentrificação da violência, a tendência dizia respeito ao comportamento apaziguador do olhar de vários dos filmes exibidos naquele ano. Filmes que, através de procedimentos formais específicos, produziam imagens estéreis e distanciadas, diante das quais o espectador se mantinha estranhamente não contaminado, a despeito da pregnância do universo retratado. Várias das questões daquele texto voltaram à tona com a… CONTINUA

Levante de um corpo em colisão

Uma montagem confrontativa abre a experiência de Cadê Edson?, empurrando-o ao choque entre materiais dissemelhantes que forja o ritmo particular do filme e acende dentro de sua dinâmica os fios desencapados constitutivos do gesto político que ele realiza. Entre a chispa de um e outro momento retratado, Cadê Edson? conecta-se às três camadas que serão trabalhadas em implicação mútua ao longo do filme: a figura da liderança política de Edson, a do movimento popular por moradia no Distrito Federal e a da conjuntura política que remexe… CONTINUA

Sóbrio, soturno, São Paulo

Quadros do Romero Britto, uma imagem da Coca-Cola, a televisão ligada e um jogo de computador. Viviane Machado, mãe de Bruno Risas, diretor e, em certa medida, o narrador do filme, acende um cigarro enquanto joga nessa sala que não poderia ser outra coisa que não um primoroso esboço da classe média paulistana. O longa-metragem se passa no contexto de uma série de infortúnios que envolvem o desemprego do pai (Julius Marcondes), o emprego mal remunerado da irmã (Iza Machado) e o retorno para a… CONTINUA