Enterrando nossos vivos

Lá pela metade da terceira história do excepcional La Flor (2019), de Mariano Llinás, Dreyfuss (Horacio Marassi), um cientista alemão sequestrado que termina amarrado no banco de trás de um carro em terras desconhecidas, liga os pontos que o levaram até aquele momento para tentar imaginar seu destino. Enquanto as sequestradoras guiam por planícies desertas, falando apenas em francês, ele especula que elas estão apenas esperando que o cair da noite: – “Chegou a hora. Elas vão me matar.” Mas elas não o matam. E… CONTINUA

O futuro de um passado

Em ao menos duas ocasiões ao longo de The Irishman, o mais novo filme de Martin Scorsese, a câmera passa do exterior ao interior de uma locação, atravessando o parabrisa de um carro em uma delas, e a porta de vidro de uma lanchonete em outra. Esse movimento traz à memória um plano bastante célebre de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, em que um movimento de grua passa por entre as letras de neon do luminoso sobre o El Rancho e atravessa uma claraboia,… CONTINUA

“Deus ajuda quem cedo madruga” – Considerações tardias sobre o 21º Festival Brasileiro de Cinema Universitário

É certo que hoje podemos pensar o mundo do trabalho como um tema especialmente recorrente nas imagens do cinema brasileiro, mas mais interessante do que evidenciar um diagnóstico de problemáticas à vista, é buscar compreender os sentidos que se produzem e se transformam a partir das novas e variadas formas de relacionamento com essa questão que há muito nos persegue; é perceber como eles articulam os reflexos de uma realidade em mutação, ou ainda: como eles mesmos se tornam a própria expressão dessa mutação. Não… CONTINUA

Brasileiros são os outros

Raros os cineastas que conseguem gerar expectativas a cada vez que lançam um novo filme. Pedro Almodóvar e Quentin Tarantino são os primeiros que me vêm à mente. Talvez Woody Allen, aos 83 anos, mantenha esse espírito. Clint Eastwood, aos 89, é outro da lista. Mas no caso de Allen e Clint temos a celebração do passado glorioso. É como um show dos Rolling Stones, ou de Paul McCartney: o sentimento de “uau, eles ainda estão aqui!” supera o impacto que possam causar. No clube… CONTINUA

Ninguém solta a mão de ninguém

O nordeste sertanejo de Bacurau faz remissão ao retrato da região feito por alguns cineastas pernambucanos no pós-retomada. Ele é espaço de confluência entre a tradição e a modernidade (um cortejo de enterro ao som da guitarra elétrica amplificada). Tem como ponto turístico o museu, mas tem wi-fi aberto e localização no Google Earth. Se um O Céu de Suely fazia do calor vencido pela geladeira um dos signos de transformação desta geografia durante a Era Lula – uma paleta de cor vívida e brilhante… CONTINUA

Coração no olho

Um bandido de meia tigela, uma cobradora de ônibus cansada de aguentar desaforo e uma aspirante a gênia do crime armam um golpe pra acertar a boa de uma vez por todas e meter o pé. Ao redor do trio principal, uma porção de gente toca a vida no bairro Laguna, entre juntar dinheiro pra trocar de carro e vingar a morte do filho assassinado. A crônica prosaica encontra o filme de ação, como já era o caso nos dois curtas cujos personagens fazem parte… CONTINUA

Marvel e o Destino Manifesto

Não é apenas que Vingadores: Ultimato ocupou uma obtusa porcentagem das salas exibidoras do país. Não é questão meramente socioeconômica, embora também o seja: o histórico semicolonial do setor de exibição dificulta o acesso da produção nacional, e o enfraquecimento do sistema legislativo das cotas, historicamente, contribui à retração do próprio empresariado cinematográfico (que produz, mas não exibe). É naíve pensar que isto seja uma reação natural do mercado, ou a predileção do público por esta ou aquela forma, estilo ou obra cinematográfica, pois é… CONTINUA

“Arte adensa a dúvida” – Entrevista com Gabriel Mascaro

A obra de Gabriel Mascaro é um dos raros casos entre cineastas brasileiros à qual a redação da Cinética devotou, em sua história, um estudo contínuo e sistemático, que pode ser rastreado nas diferentes fases da revista. Seus filmes foram vistos entre nós ora com admiração, ora com reserva, ora com profundo distanciamento crítico, mas raramente com indiferença. Talvez porque os filmes de Mascaro, além de provocadores e inquietantes a cada vez (a ponto de motivarem a escrita de três textos críticos sobre a mesma… CONTINUA

A chance para sonhar, a chance para nascer

A aceleração do Brasil na direção de uma intensa experimentação geomicropolítica necroliberal-colonial pressiona as proposições artísticas de resistência para um modelo que, levado ao paroxismo, tende ao monotemático e ao descrente. O que se chama freqüentemente de “urgência” significa concretamente uma expectativa de efeitos de rápida velocidade cognitiva que estejam pré-prontos dentro do que é esperado e conhecido no mapa moral. Não por acaso, nos últimos anos abundam filmes que mostram cartelas com estatísticas, ou que se apóiam em seu valor de evidência e “necessidade”.… CONTINUA

Imagens que assombram – o efeito impeachment no cinema documental

As manifestações de rua em 2013 foram um acontecimento fundamental da história brasileira. De caráter popular, tais demonstrações deixavam claro o nível de frustração social com uma perspectiva de enriquecimento, de participação democrática, de justiça social e cidadã que não ocorreu. Elas revelavam o desejo de “um país diferente de tudo que está aí”. E poderiam ter sido utilizadas pela esquerda para dizer: estamos enredados em uma camisa de força de alianças para conseguir fazer a segunda rodada de políticas de crescimento e redistribuição de… CONTINUA