Mostra Foco #1 : Mirar horizontes, tropeçar em desabamentos de terra

Se ano passado o mote da Mostra de Tiradentes era “a imaginação como potência”, este ano parece que batemos na imaginação em revés. Não deu pé, a imaginação não deu conta, 2020 foi inimaginável. Tinha na formulação curatorial algo como: “a distopia como imaginário é um beco sem saída, precisamos de elaborações que escapem do achatamento de horizonte que vem se instalando ano a ano”. A intensidade de 2019 parecia a saturação máxima do assédio mental e material coletivo, mas não subestimemos a inventividade, estética… CONTINUA

Refúgio ao revés

Dotado de uma languidez perversa, Oráculo (2021) jamais produz vidências e respostas. Sob a égide da textura da película, material familiar à dupla de diretores Melissa Dullius e Gustavo Jahn, o filme revira a intimidade da matéria bruta e a transforma em olhar estrangeiro que se volta às paisagens humanas e minerais. Em poucos e longos planos-sequências, evidenciam-se caminhos sem início nem fim de três personagens absortos e longínquos. A figura do oráculo é aquela vinculada às artes divinatórias, que a tudo conhece – o… CONTINUA

Às que veem sem mapas

O plano geral de uma casa que emana, da pequena janela lateral, uma luz vermelha, abre o longa de Isaac Donato, Açucena. Como se fossemos observadores ocultos na penumbra que acomete o mundo na virada do dia para noite, gravitando em direção à luz rosácea, consolida-se, já na primeira cena, o ambiente enigmático e lúdico que habitaremos a partir daí. O filme se passa no tempo de preparação do aniversário de sete anos de Açucena – que se cumprem há mais de vinte anos –… CONTINUA

Da arte do constrangimento ou O cosmopolitismo venceu

Uma questão de arquitetura O mais fascinante da arquitetura é que o que ela determina nos modos de vida, o faz quase sempre muito sorrateiramente. Não em princípio. Primeiro se impõe de forma abrupta: demole-se um morro, abre-se uma avenida, eleva-se um prédio. Os barulhos da obra atrapalham. Mas aos poucos tudo isso se naturaliza, até que suas determinantes funcionais são esquecidas. Elas tendem à amnésia, mas continuam estabelecendo um mundo. E mais: lembrar sua raison d’être não promove mudança nenhuma. O que leva a… CONTINUA

Mank: o bêbado, o gênio e a cobra de duas cabeças

Se Herman Mankiewicz estivesse vivo, eu o convidaria para tomar um goró. Mesmo que não beba, eu o ouviria, apreciando o ritmo dramático do seu pileque, a captar um pouco dos gracejos da Hollywood antiga. Em Mank (2020), novo filme de David Fincher, o roteirista Mankiewicz é retratado por diversos prismas, mas fica a sensação de um amigo de copo. O protagonista transmite ao menos duas frequentes tendências dos prazeres do álcool: o delírio e a franqueza. O filme de Fincher se fia precisamente nessa… CONTINUA

Maneirismo e catástrofe

Em uma nave montada de sucata, o viajante espacial solitário WA4, incumbido da missão de assassinar Juscelino Kubitschek no momento de inauguração da nova capital do país, descobre-se perdido no tempo. A nave despenca em Ceilândia, em 2016, durante o processo de golpe parlamentar que derrubaria a presidente Dilma Rousseff. O viajante de Era uma vez Brasília (Adirley Queirós, 2017) chegou atrasado, tarde demais para cumprir sua missão. Ele termina por se juntar ao movimento de resistência, que luta também uma guerra tardia, sob o… CONTINUA

Quando o causo vira filme: reflexões sobre a arte de Faela Maya

Barzinho Clandestino se inicia com um plano onde uma personagem manda uma mensagem de áudio para outra falando que está a caminho. O plano seguinte é dela chegando a uma calçada onde outras três meninas estão em pé. Aqui há a ausência de uma convenção narrativa audiovisual: o plano de estabelecimento. O local onde elas estão, no entanto, é rapidamente apresentado em poucas linhas de diálogo: – O mototáxi não achou o canto – Também, a gente tá quase escondida… – Eu consegui esse bar… CONTINUA

Vulnerável ao imprevisível

Do lado esquerdo, um jovem olha fixamente para baixo enquanto um boné do Flamengo cobre seu rosto. Ele abre a jaqueta escura, como quem sabe que a partir daquele momento as coisas ficarão acaloradas. Do lado direito, outro jovem escuta atentamente a voz do mestre de cerimônias fazendo os preparativos. Seu corpo está mais agitado, transparecendo a ansiedade. Ao fundo da imagem, uma multidão de outros jovens, tal como nós, acompanha atentamente. Estamos em um duelo de rima no Espírito Santo em 2017. Durante toda… CONTINUA

As coisas mudaram, tá?

O pequeno filme sem título, como é comum nos materiais feitos para distribuição nas redes sociais, vem acompanhado da legenda: “vocês tão fazendo com que o branco sofra racismo!!!”. A afirmação não engana o consumidor habituado à gramática zombeteira dos três sinais de exclamação. No vídeo vemos um jovem negro, kaique brito (é como ele assina) que interpreta de maneira literal – em uma sequência de minúsculas cenas – as declamações de áudio de uma indignada voz feminina que afirma, com ares de objetividade, que… CONTINUA

Um efeito paranoico

Em O Verdadeiro Motivo do Programa do Jô Ter Acabado, o material de um programa em que Jô Soares entrevista o cantor Gusttavo Lima é remontado em um vídeo de três minutos onde a entrevista quase some e dá espaço a uma situação tensa e distorcida por close-ups e interferências sonoras. Uma espécie de filme de terror se desenrola. A presa é conduzida até a armadilha. Não há como escapar porque não há sequer ameaça evidente. É preciso que qualquer coisa aconteça para que as… CONTINUA