Câmera de espelhos

Pendular, terceiro longa dirigido por Júlia Murat, tem um ponto de partida simples: um casal de artistas, aparentando entre trinta e quarenta anos, brancos, sem nome, divide espaço num galpão no centro da cidade do Rio. O filme vai de uma situação de equilíbrio inicial entre os dois, quando uma linha é demarcada neste amplo espaço, até o momento da crise da relação, dividindo-se em quatro capítulos. Pendular cria um jogo de ressonâncias e espelhamentos da situação afetiva do casal por meio de seus demais… CONTINUA

A fita branca

As mãos que escrevem este texto estão contaminadas por uma angústia que um filme como Vazante suscita. Se o filme escolhe falar de um episódio de 1821, sobre a terra encharcada de sangue da Minas Gerais colonial, esse sangue reversamente bombeia, como que por vontade própria, através dessas mãos que também não lhe pertencem, mas que aqui encontram morada, ou melhor: escoamento. Nessa torrente pontual, pedem passagem também conversas de corredor, memórias de um debate, e um contraste que me provocou uma imprevisível surpresa aos… CONTINUA

Das superfícies

Existe um paradoxo essencial no cinema de Olivier Assayas, uma dialética entre o aparente e o alegórico que encontra nos elementos culturais e na gama referencial de filmes como Espionagem na Rede (Demonlover, 2002), Traição em Hong-Kong (Boarding Gate, 2007) e este Personal Shopper (2016) norteadores emblemáticos de uma era. Essa bagagem de menções e apontamentos, através de uma conceituação do e pelo aparente ao mesmo tempo que assume tais elementos pelo que eles são – perspectivas tecnológicas em voga e premissas de um cinema… CONTINUA

A imagem antes do olhar

Ponderando uma tela branca em sua residência, com o pincel em mãos e prestes a tocá-la, o pintor e professor de artes Wladyslaw Strzeminski (Boguslaw Linda) é interrompido pela sombra avermelhada de um painel cobrindo a sua janela. Inicialmente, ouvimos o discurso ufanista em um megafone falando do governo socialista instaurado na Polônia. Em seguida, um plano mais fechado mostra a tela em branco que o pintor contempla ser tomada por uma luz avermelhada, oriunda de uma bandeira rubra de pano sendo erguida em seu… CONTINUA

A imagem em jogo

O Inquilino (2010) é uma das obras co-dirigidas pelo cineasta Cao Guimarães com a artista visual Rivane Neuenschwander – parceria que inclui também trabalhos como Quarta-feira de Cinzas (2006) e a obra-irmã Sopro (2000). A diferença de titulação é proposital, senão propositiva: Cao Guimarães tem como marca de sua trajetória um trânsito entre a galeria e a sala de cinema – inclusive com uma produção frequente (e de altos e baixos) em longa-metragem; já Neuenschwander tem, no vídeo, matéria de uma fração delimitada de sua… CONTINUA

Todo dia é um ato

Certa vez um comediante estadunidense disse: “Se você se lembra dos anos 1960 é porque não estava lá”. Para além da evidente provocação com a nostalgia (artística, revolucionária), há na blague uma traição saborosa, pois, para a maioria dos que lá não estiveram, o espírito da época é inapreensível em sua profusão de sentidos, contradições, possibilidades e angústias, especialmente o turbilhão em torno de 1968. Neste ano central para o mundo contemporâneo, os movimentos sinfonicamente dessincronizados em várias partes do Ocidente pontuavam uma promessa nunca… CONTINUA

Do Chile para outro lugar

“Marijuana ou morfina?”: esta era uma das piadas de Pablo Neruda, ao receber os amigos. Em vez de potes com as inscrições de “sal” e “pimenta”, colocava no saleiro e no pimenteiro as palavras “maconha” e “morfina”, como se oferecesse drogas pesadas, que ajudassem na digestão. Passam-se os anos, Neruda morre e o corpo foi exposto em uma de suas casas – aprumado, de terno, no caixão. A poucos passos dali nascia a noite chilena, que havia recebido Augusto Pinochet doze dias antes, em setembro… CONTINUA

O gozo interrompido

Seria possível invocar as glórias heroicas da história do cinema para lamentar a que ponto chegamos com Dunkirk. Para ficar no terreno das superproduções em 70mm e num dos ídolos de Christopher Nolan, bastaria rever a sequência da tempestade de A Filha de Ryan (1970), para a qual David Lean teve de esperar um ano inteiro na costa irlandesa, com a equipe e o elenco, antes de poder filmar. Enquanto Lean aposta no encontro irrepetível entre as forças da natureza e as do cinema, transformando… CONTINUA

Dar a ver: entrevista com Adriano Aprà

Adriano Aprà é uma figura polivalente, que atua desde o final da década de 1950 em diversas das esferas cinematográficas. Foi um dos mais renomados críticos italianos da geração posterior à neorrealista, sendo um dos nomes mais participativos das transformações que ocorreram no cinema de seu país na segunda metade do século XX; teve uma atuação acadêmica exemplar e foi editor de uma quantidade ímpar de coletâneas e publicações refletindo sobre a arte cinematográfica; foi curador do Festival de Pesaro por dez anos, onde consagrou… CONTINUA

Sobre medalhões e excluídos

Antônio Pitanga viveu a Nova Era no cinema brasileiro. Nascido em Salvador, 1939, o fato lhe garantiu um batizado cósmico: estava no lugar certo, na hora certa. Anos depois, no meio de uma turma de loucos, sob as bênçãos do crítico Walter da Silveira, abandonou o sobrenome seco, o sobrenome comedido, o sobrenome funcionário público – um mero “Sampaio” – pelo “Pitanga”. Da árvore frondosa e carnuda, tropical como todos deveriam ser. Se Oswaldo Massaini produziu O Pagador de Promessas (1962), na Boca do Lixo… CONTINUA