Movimento é memória; memória é História

Há uma sedução estranhamente poderosa no plano de abertura de Millennium Mambo, naquele corpo desconhecido que caminha por um corredor do qual nada sabemos, dentro de uma configuração espaço-temporal desprovida de qualquer encadeamento narrativo lógico: como chegamos aqui e para onde estamos indo? Como se situar diante da ritualização de uma imagem por completo incógnita, cuja própria matéria de reverência parece estar a se descobrir no momento mesmo em que a reverenciamos? O que se desvenda no diálogo com o olhar continuado é um certo… CONTINUA

A burocracia não nos servirá em tempos de guerra

Estamos situados em uma sala escura. Nela, dois corpos posicionam-se um diante do outro. Raros os planos em que ambos serão dispostos no mesmo quadro, mas é a partir da interação entre eles que acessaremos um dos momentos mais paradigmáticos da história recente do país, seus ecos e seus fantasmas – atualmente sempre à espreita, em busca de um corpo no qual encarnarem. O momento: aquele Brasil pós-1964, os interstícios de uma guerra travada entre as forças do Estado e qualquer uma que ousasse contestá-las.… CONTINUA

“As mulheres são como as águas, crescem quando juntas”

  “Os homens olham para as mulheres, as mulheres olham para elas mesmas sendo olhadas. Os homens sonham com as mulheres, as mulheres sonham com elas mesmas sendo sonhadas.” John Berger começa o segundo episódio, Women in Art, de sua série televisiva Ways of Seeing com essas palavras para dizer da forma com que se dão as imagens das mulheres (vale ressaltar que, principalmente, a imagem da mulher branca, pois essas imagens, além da questão de gênero, também sofrem por um recorte de raça e… CONTINUA

O pau de Deus: a extrema direita na vanguarda do cinismo pornográfico

O filme Obsessão (2004), dirigido por J. Gaspar, faz parte do selo pornográfico Brasileirinhas. Na capa do filme está a atriz Chloe Jones, “a número 1 dos EUA”, nos braços de Alexandre Frota, ator pornô e hoje deputado federal pelo PSL. Ainda no cartaz de divulgação Chloe surge vestida com um top verde-amarelo e com a bandeira brasileira amarrada ao quadril. Não, Chloe não chegaria a entoar o canto “sou brasileiro, com muito orgulho” e suponho que nem faria coro às nossas torcidas futebolísticas. Obsessão,… CONTINUA

Afetos “in natura”

Os primeiros planos do filme espanhol O Que Arde (título em galego) mostram as árvores de uma floresta por ângulos e iluminações quase sobrenaturais, acompanhados de uma trilha sonora que aumenta a estranheza até o momento em que as árvores começam a ganhar movimento de forma ainda mais inexplicável – leva um tempo de contemplação até o filme revelar os tratores que estão derrubando uma série de árvores, numa ação de limpeza de terreno. Já no filme brasileiro Sem Seu Sangue, os primeiros planos mostram… CONTINUA

Não vai ficar tudo bem

De várias maneiras, um sentimento bastante difuso, mas onipresente, de que “as coisas não vão bem” atravessa a seleção desse ano em Cannes, como não poderia deixar de ser frente ao mundo em que vivemos hoje. No entanto, nos últimos dias, três filmes se colocaram de maneira bem mais frontal com relação a esse sentimento genérico e encontraram formas diferentes de traçar um panorama bastante duro desse contexto mundial – certamente não por acaso todos os três de alguma maneira incorporando elementos de um certo… CONTINUA

Esse assombroso passado

Se hoje um criador precisa lidar com as lembranças de tudo que existiu antes no cinema, ele ainda pode contar com uma constante: o poder do fascínio da ficção, da necessidade humana de fabular, encontrando no cinema uma ferramenta poderosa pela maneira como consegue acessar um imaginário e fazer literalmente que se veja o mundo por outras lentes. Nesse sentido, poucos cinemas são tão informados pelo poder da imagem cinematográfica e pela mitologia por ela criada quanto o de Quentin Tarantino. E se isso é… CONTINUA

Projeções do real

Não é preciso nenhuma grande interpretação crítica, até porque tal fato está falado com todas as letras no testemunho de um dos entrevistados com maior acesso ao personagem-título de Diego Maradona: na combinação desses dois nomes havia na verdade duas pessoas diferentes com quem os próximos a ele precisavam se relacionar. E se não se pode dizer que a ideia dessa necessária separação entre “Diego” e “Maradona” não chegue a ser uma novidade (afinal, Pelé – sempre ele assombrando narrativas de Maradona – já falava… CONTINUA

“I am a passenger”

O hino à falta de controle sobre o destino proposto por Iggy Pop abre a primeira cena de La Gomera, novo filme do romeno Corneliu Porumboiu – e seu primeiro a ser exibido na competição de Cannes. A música acompanha a chegada do policial Cristi na ilha espanhola que dá nome ao filme: ali ele é um estranho e será transportado por uma história sobre cujas rédeas, logo vamos percebendo, não tem nenhum controle. A forma como o filme se espalha pelo tempo e pelo… CONTINUA

Estranho: modos de usar

Cada vez mais, o cinema que se costuma exibir nos festivais é marcado por um apelo ao realismo, seja na sua vertente mais radicalmente naturalista, seja numa incorporação de aspectos fantásticos típicos de cinemas de gênero, mas onde se exige responder a uma lógica dramática e narrativa em que a construção de personagens/seres humanos retratados deve seguir regras psicológicas que emprestem a suas ações algum tipo de racionalidade onde possam se espelhar os espectadores. Inclusive, possivelmente o mesmo pode ser dito até mesmo da lógica… CONTINUA