Dotado de uma languidez perversa, Oráculo (2021) jamais produz vidências e respostas. Sob a égide da textura da película, material familiar à dupla de diretores Melissa Dullius e Gustavo Jahn, o filme revira a intimidade da matéria bruta e a transforma em olhar estrangeiro que se volta às paisagens humanas e minerais. Em poucos e longos planos-sequências, evidenciam-se caminhos sem início nem fim de três personagens absortos e longínquos.
A figura do oráculo é aquela vinculada às artes divinatórias, que a tudo conhece – o antes e o depois. Seria possível conceber um oráculo dotado da destreza de apreender o presente? Que pudesse despir-se de sua função atemporal e colocar-se, no tempo do filme, sob as leis da vigência? Ceder aos impulsos da metafísica e se tornar, em absoluto, humano?
Diferentemente dos filmes anteriores de Dullius e Jahn, ancorados na vibração das cores e na exímia composição plástica surrealista, Oráculo soa mais minimalista. Ao contrário do assombro colorido de Cat Effekt (2011) ou do enlevo estranhamente afetivo de Muito Romântico (2016), Oráculo parece menos confortável. Se filmar mundo afora constitui o aspecto estrangeiro tão particular à dupla, o retorno à pátria é confesso, no corpo-a-corpo com o filme, no entre-lugar do não-pertencimento. Avesso às ironias, o filme é ríspido com seus personagens na mesma medida em que a película é manuseada com imenso carinho.
A segunda cena do filme, que se segue ao plano inaugural de uma paisagem azul-ciano, inicia com um homem acordando, estatelado sobre uma pedra ladeada pelo quebra-mar. O despertar é lânguido e laborioso, toma mais tempo do que se espera e configura, de imediato, a maneira como os diretores encaram o feitio de um filme no ápice da artesania. A distância entre o homem e a câmera que tudo enquadra e colore minuciosamente anuncia o enamoramento profundo em relação ao aparato que se justapõe à frigidez com a qual os corpos são encarados.
A configuração da cena ecoa O Pátio (1959), de Glauber Rocha (uma das figuras a quem o filme é, como saberemos mais tarde, dedicado), mas em um arranjo solitário. Se o curta-metragem de Glauber permite que a sedução a dois aconteça apesar da distância, Oráculo não permite que dois corpos ocupem o mesmo espaço. A dança da aurora desse homem, que desperta ao lado de garrafas vazias, é solitária. Aparece, então, uma segunda figura, uma mulher com xale vermelho portando uma bandeira vermelha, que convida o homem ao encontro. Embebida mais uma vez por Glauber, dessa vez a partir da música que evoca o canto afrorreligioso de Terra em Transe (1967) e da figura de Diaz carregando a bandeira preta nas areias de uma praia tão indistinta quanto a de Oráculo, o homem não completa o encontro. Ao invés disso, ao descer de seu império rochoso, ele foge em direção ao mar ressacado.
A fuga do encontro abre para o que se torna um filme de trajetos individuais. Na recusa de encontrar-se com a carne viva que pulsa, abdica-se, também, da coletividade. Oráculo é a derrocada da união e o transe das personagens é composto de solilóquios ordinários desgarrados de pretérito e futuro. Esquivar-se é, também, ação que não tem um fim em si, mas que ordena as particularidades de quem é filmado. Em seus planos-sequência independentes entre si, o filme se delonga nas movimentações de cada personagem, no tempo que leva cada gesto, os quais, mesmo que desconheçamos seus momentos iniciais e conclusivos, estão encerrados na progressão temporal que o filme provém.
Através de sons uterinos e abafados, o longa-metragem nos apresenta travessias e desencontros. Primando pela temporalidade de cada rolo de 16mm, o filme incorpora o universo do que é, do que é possível tatear, e não do que já foi e do que ainda irá ser. Fincado no presente, na sólida duração do tempo, as personagens se prostram no ambiente e dali criam mundos encerrados em si, regidos por nada mais que apenas aquele fragmento de momento. Conhecer, ao que parece ao filme, é tocar os verbos imperativos.
Oráculo se interessa pelas ações. Sem horizonte definido, a intensidade de cada movimento se equipara a um terremoto de magnitude 9 na escala Richter. A música tocada pela adolescente no violão pode ser um acontecimento épico na edificação de sua personalidade; a caminhada de um senhor numa passarela sob o oceano desencadeia memórias longínquas de sua existência. A mecânica dos corpos é observada com zelo e se torna, junto à geografia do Brasil à beira-mar, o objeto de interesse do filme, ainda que sob o véu da admiração remota. O solavanco das ondas, material, é tão importante quanto o homem que nelas se imiscui. O espetacular está ao alcance geral da nação.
Captando a essência das pequenas existências, Oráculo é um filme sobre o labor. O labor de confecção de um filme em película vem ao encontro dos microexercícios daqueles que ocupam a tela. Ao assumir o encargo de filmar com esse material, escolhe-se cenas ao rés do chão, concretas. Avesso às confabulações, somos apresentados ao mais natural dos universos possíveis, seja das pessoas, seja da geografia.
Através tão somente de um mar comum, essas personagens se conectam pela inteireza do eu anteposto à paisagem melancólica. O despertar, a caminhada e a interpretação musical não são metáforas de algo maior, pelo contrário, elas são exatamente aquilo que se prestam a ser, e na autossuficiência de cada um dos momentos filmados se mostra um cinema que se inteira e se constrói daqueles corpos ainda assim forasteiros. No reconhecimento do relevo tupiniquim, Oráculo faz do pertencimento sensação estrangeira.
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