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O atravessar do toque

SUPERPINA: Gostoso é Quando a Gente Faz!, de Jean Santos – título, que, aparentemente, faz referência a pornochanchadas brasileiras – é um ficção científica sobre um estranho fenômeno que provoca clarões de luz multicolor no céu de alguns bairros de Recife, como Pina (onde a trama do filme se desenvolve), que desencadeia alguns acontecimentos estranhos como ataques de carrinhos de supermercado. SUPERPINA também nos conta sobre Paula, uma jovem cantora, que passa suas tardes junto de Isaura, uma senhora aposentada, e trabalhando no excêntrico supermercado chamado SUPERPINA. Um lugar repleto de erotismo junto a alimentos e produtos de aparência fálica, e onde boa parte dos funcionários são adeptos ao Amor Primo, uma forma de se relacionar sexualmente, que pratica constantemente surubas delirantes (muitas vezes no próprio supermercado). Boa parte da narrativa, também, é permeada pela história de Augusto, um jovem que não consegue sentir tesão e começa a experimentar o Amor Primo. Além de tudo isso, ainda temos um fofão modernoso – referência à Carreta Furacão – que parece ser uma entidade do supermercado, do desejo e do delírio.

Como pode-se perceber o filme busca dar conta de vários assuntos transformando-se numa espécie de mexidão de sucrilhos coloridos, com uma dose extra de corante a todo momento que é adicionado o filtro de luzes coloridas, nos deixando apenas com o gosto de aroma artificial na boca. Contudo, parte da essência do filme não seria, justamente, essa: um emaranhar-se entre corpos e coisas que roçam-se sem tocarem-se realmente? O tema central de SUPERPINA é a ausência, principalmente, do toque, e o efeito disso sobre os corpos. Essa questão faz-se presente na cena da conversa entre Paula e seu colega de trabalho sobre todos os amores que, de uma hora para outra, sumiram; no sonho de uma das personagens mais ativa no Amor Primo ser “que ninguém nunca mais sofra de amor”; no corpo de Augusto que não reage aos estímulos do prazer vindos do mundo; a relação dos cliente e funcionários com alguns objetos do supermercado, ao tocarem os manequins e bananas de maneira lasciva, demonstrando uma fome e sede pelo toque. E, também, no refrão da música cantada por Paula que diz “Volta Monroe, Harlow, Garbo…”, referindo-se a três ícones da Era de Ouro de Hollywood, denominadas como “musas” e “sex-simbols”, responsáveis por inúmeras paixões platônicas e devotos mundo afora, mesmo anos depois do falecimento físico delas, o que diz, de alguma forma, da questão da ausência da fisicalidade e do toque, pois o glamour, o amor e o brilho direcionado a essas figuras, está, diretamente, calcado na ideia que paira a imagens delas. Monroe, Harlow, Garbo são musas, mulheres cujas imagens suscitam algo de sacro, e somente permanecem assim ao manterem-se intocáveis.

Esses elementos, servem quase como um contraponto às cenas de suruba, onde corpos se roçam com voracidade, de forma a sublimar, em parte, a intensidade desse toque que fricciona mas não sacia. A partir dessa urgência, berrada pelos corpos, as personagens estão sempre em um movimento oscilante entre o resguardo e a explosão desse sentimento, criando alguns momentos de delírio, muito influenciados pelo fenômeno natural que anda acontecendo na região. Essa oscilação, também, faz-se presente na estrutura do filme, que é permeado de cenas bem humoradas, acaloradas e pulsantes, seguidos de cenas extremamente melancólicas e outras solitárias. Esses dois “polos” do filme, a solidão e o coletivo, criam um contraste estranho, como se, a todo momento, um polo projetasse o outro, escancarando a falta e a ausência de algo. Todas as cenas parecem ter sede, ou possuírem um espaço vazio sempre a espera de ser preenchido. No entanto, esse espaço nunca será ocupado, pois parte da natureza do sexo, do delírio e do amor necessita, assim como as musas hollywoodianas, da projeção.

“Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy”, nos responde o conto Dama da Noite, de Caio Fernando Abreu,. O preenchimento que as cenas e as personagens buscam nunca será ocupado, devido à própria natureza do sexo, do delírio e da paixão que possuem, uma necessidade de uma impossibilidade, de um espaço para sempre vago que torne possível a projeção de outros elementos que não estão presentes na realidade para que a embriaguez e êxtase possam se instalar naquele contexto. Essa questão da impossibilidade com que o filme lida, me remete diretamente à rainha contemporânea da sofrência sertaneja, Marília Mendonça. Principalmente, pela maioria das músicas dela dizerem, justamente, da impossibilidade das imagens estabelecerem-se enquanto uma constância. Recorrentemente as letras de Marília, lidam com afetos que existem e pulsam no mundo subjetivo, mas quando buscam existir, também, no exterior, em contato com outras subjetividades e afetos, deparam-se com uma barreira impossibilitando que esse sentimento estabeleça-se plenamente. Essa barreira assume várias formas, podendo ser alguma convenção do status quo, como é o caso da música “Amante Não Tem Lar”, cuja letra diz da falta de um espaço para a relação de “amante” em uma sociedade normativa (e hipócrita) e que esse espaço social está diretamente relacionado a uma falta de lugar para o sentimento da amante para com o “traidor”. Ou então na música “Estranho”, que diz sobre o deslocamento e descompasso entre o afeto passado e presente, onde a diferença temporal acaba por gerar uma fricção entre aquilo que permanece resguardado na memória e o que, de fato, toca, a ponto da narradora estranhar o corpo que a acompanhará. E uma barreira que talvez melhor sirva de exemplo é o caso da música “De Quem é a Culpa?”, onde a impossibilidade estabelece-se a partir do vão entre um corpo que existe no mundo, um olhar que captura aquela imagem, e, por consequência, projeta outra imagem sobre a primeira. A partir desse processo, surge o desejo do toque, que faz-se impossível, pois o desejo advém de uma imagem projetada, uma miragem. Pode-se perceber isso, de forma mais evidente, a partir do refrão: “A culpa é sua por ter esse sorriso ou a culpa é minha por me apaixonar por ele? …Só isso.” Ou a parte final da música, quando a narradora afirma: “me apaixonei pelo o que inventei de você”.

As músicas de Marília confrontam a ideia de que o próprio gesto de relacionar-se contém em si uma parte de pura ausência, um espaço onde as imagens criadas e desejadas não poderão se estabelecer ou tocar, por serem projeções e precisarem manterem-se nessa natureza para pulsarem. SUPERPINA enfrenta a mesma questão mas de forma completamente outra, pois enquanto para Marília Mendonça, essa ausência é o ponto fraco das relações, o filme parece defender que é, justamente, a impossibilidade que torna o amor possível. Isso fica evidente a partir de duas sequências, que curiosamente localizam-se no início e fechamento do filme: a primeira é uma das cenas em que Paula e Isaura encontram-se. Isaura lê o destino de Paula a partir das borras de chá numa xícara. Ela explica à jovem a linguagem escondida ali, mostrando-lhe os símbolos criados pela borra. A segunda é quando Augusto, que finalmente parece alcançar o sentimento de tesão, bate uma punheta dentro do mar. Ambas as cenas concebem a projeção, dos símbolos na borra, ou a envolvida no ato da masturbação, como um espaço onde o afeto torna-se possível, seja ele o carinho e amizade entre Isaura e Paula, representando também o ponto de encontro entre duas gerações distantes ou o tesão pulsante em Augusto. A impossibilidade de uma imagem, e/ou a projeção de imagens que não possuem correspondentes no mundo “real” transforma-se na possibilidade para que outro elemento paire naquele espaço. Como o afeto e o desejo.


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