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Morte certa, vida impossível

A Morte Branca do Feiticeiro Negro é um filme de artifícios simples. Imagens de arquivo, vídeos digitais, música e carta. A carta, entretanto, jamais vira narração. Não é lida e nem performada, despida de corpo. Entre incompletudes e fotogramas que “flicam”, paira, muda, uma carta de suicídio.

A carta de suicídio de Timóteo é o único vestígio de sua vida, afirmando-se apenas quando não mais existe. Como, então, dar uma voz fictícia a um corpo que em vida nunca teve direito de existir? Rodrigo Ribeiro opta, então, por fazer da carta um vestígio silencioso, que se apresenta enquanto legenda no corpo fílmico, mantidas as feições arcaicas da escrita. “Perdaõ” é o primeiro rastro, palavra-abertura, que temos dessa legenda em português antigo que se desvela na morte de quem escreve. A carta, além de silenciosa, não está marcada com destinatário preciso. Perdão a quem? A escrita analógica de Timóteo deságua sobre telas digitais. Remetente que nunca soube até onde sua carta chegaria e em que ela se transformaria.

O curta é corroído como as ferrugens filmadas. Tilintando entre passado, presente e suspensão, amalgama-se a partir de amarrações entre espaços anacrônicos. A carta de Timóteo é a costura do tecido vulcânico do filme. São realmente dez minutos? Não há brechas para as portas infernais que se abrem, conjuntamente aos sons agudos e vibrações incômodas que atravessam. O filme é para Timóteo, que se mata na terceira tentativa de suicídio e jamais soube, sequer, que o cinema existe.

As breves filmagens e fotografias antigas do começo de Feiticeiro são pontuadas por corpos fantasmagóricos. Corpos negros e brancos invadem a tela, e, como os completos desconhecidos que são, desaparecem. Uma empregada negra é filmada guiando crianças brancas. Um homem de meia-idade, também negro, olha diretamente para o espectador enquanto levanta a mão ossuda em direção ao pescoço, em um gesto similar ao enforcamento. Uma mulher, provavelmente escravizada, cata algo no solo de uma plantação e despeja esse montinho de sementes nas mãos de um homem, provavelmente seu patrão, que os exibe para quem filma. Registros históricos, provavelmente despidos do desejo cinematográfico, pairam, solenes, ante à carta de Timóteo.

Entre nós, o filme e Timóteo existem fissuras profundas, e A Morte Branca do Feiticeiro Negro floresce em cada uma delas. O descompasso temporal, o desconhecimento, o desatino e, óbvia, a morte. A empatia tradicional, pelo reconhecimento de alguém enquanto corpo, é liquidada e dá lugar ao imaginário, ao devir constante entre quem foi Timóteo e sua perpetuação póstuma. Nós, esses remetentes atravessados pelo contato do realizador com essa carta, temos acesso a, se muito, um vulto de existência. Timóteo sem sobrenome, imagens sem dono, pessoas sem identidade, escrita sem voz: em A Morte Branca do Feiticeiro Negro, as matrizes que fundam o filme são sombras de vidas inapreensíveis.

A certa altura, imagens do presente invadem o espaço antes destinado ao passado. Um campo de terra negra e folhas verde-prateadas consome a tela. A música grave é a mesma, assim como a carta, que continua a se desdobrar na legenda. O teletransporte sugere, portanto, a continuidade entre passado e presente, entre espaços que nunca coexistiram, entre morte e vida. Mesmo no presente, nas imagens digitais em alta definição, os elementos não deixam de constituírem-se enquanto espectros. A indefinição impera. A abdicação de tentar formar silhuetas distintas e agradáveis invoca essa mesma impossibilidade de existência destinada a tantos corpos. O vulto, portanto, é tudo que há, e tudo que pode ser neste filme, e imergir neles faz-se necessário.

O filme parece ser sobre tudo aquilo que não teve tempo nem possibilidade de existir. O som, musical, não se faz melodia por inteiro. As imagens são fragmentos, manuseados, assim como a carta de Timóteo, pelo diretor, que as inscreve. O manuseio permite a sobrevida dos materiais, que parece exigir cuidado para não despedaçar e, mais uma vez, esvair-se. As aparições fugazes mediadas pela carta brutal compõem um filme igualmente etéreo, cru e belo.


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