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O amor no instante

Neste mais recente O Sal das Lágrimas – e isto se mantivermos em mente a polissêmica constância de um diretor para quem a análise mais superficial acabaria por elencar pelo menos trinta filmes dedicados aos encontros amorosos desde meados dos anos sessenta – quando Geneviève, personagem de uma das três amantes principais de um certo Luc, diz-lhe que a separação “só parcial” deles, ainda que motivada pelo ingresso deste numa academia de altos estudos de marcenaria, findaria por separá-los de vez, ela não toma para si o papel da mulher que espera passivamente, à maneira de um mero implorar auto-provocado pelo abandono ou pela desconfiança. Ela não “se histericiza”, nem tampouco finge congratulações duradouramente. É num ato extremo de lucidez que ela o adverte, em resposta à fútil tentativa de tranquilização por vocabulários de palavras misturadas à tons legíveis de reconforto fugidio: “você me ama (decerto, mas somente) neste instante”. O que seria o mesmo que dizer: fora dos meus olhos, da reprodução deles através da qual você existe, o amor está em risco pleno; fora dos instantes em que o tenho, traduzidos não tão obviamente pelo saber-que-o-tenho, tudo deixa de correr seguramente e como eu o desejaria.

Ora, “consciente ou não” de tamanhas linhas comuns entre os problemas de gênero e os problemas de liberação (e libertação) sexual, não é por menos que duas das narrativas mais fundantes sobre a diversificação basilar disto que se chama o mundo psíquico, que Philippe Garrel continua, com tenacidade, a devolver à pulsão erótica sua estrutura-raiz de repetição re-encenante. Mas por que aspeamos esta consciência, já que se trata da reabertura de um campo psíquico por si só, e certamente não o campo do cineasta?

É que a crítica – falamos, agora, sim, da de Garrel –, às suas formas se delicia com essa margem de dúvidas sobre os tantos encontros verificáveis e constitutivos de uma legibilidade comum entre nós, leitores e videntes. Essa postura, quase que a de um autor à distância da autoria, e que faz com que liguemos os filmes uns aos outros menos por encontros do que por desvios, garante-lhe a posição particular de observar todas as suas obras como possíveis destinatários a um cinema nacional, um cinema poético, um cinema sociológico, um cinema afetivo – um cinema cinema, enfim. Ela finge afastar, mas atrai para si “o pulsional”, esse choque contrário às lógicas sociais visíveis, que no caso desta obra poderíamos perceber espraiadas num tabuleiro dramático sem cores cujas passagens exigem distintos domínios das práticas e das lógicas da monogamia e da liberdade. De que duas narrativas falamos, afinal?

Outrora prometida convicta do infortúnio, Psiquê, ameaçada pela vergonha do destino estéril e ausente de laços matrimoniais, só vem a conhecer o amor – na forma de um marido gentil, apaixonado, “inesperado” – sob a condição de jamais poder ver seu rosto. Eros lhe permanece anônimo até a noite da tragédia incitada pela curiosidade e pela quebra do pacto, quando a luz de uma vela e a revelação física do belo esposo rompem o que havia de divino no acontecimento amoroso, deixando-a retornar ao estado de morte perpetrado pelo sono profundo – e eterno. Salvas as proporções e distinções da narratologia amorosa, algo semelhante ocorre entre Orfeu e Eurídice, mitologia aliás retomada de maneira intricada por Céline Sciamma em Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), cujas agruras do estar-juntos e num mesmo plano de decisões requerem como teste derradeiro a saída dos infernos ao mundo dos vivos sem que aquele, guiando-a à frente, pudesse se virar para ver o rosto desta: a visão total, aquela dedicada a ver “como que por inteiro”, é novamente interdita àquele que deseja provar (um: o) “verdadeiro” amor, e isto se dará precisamente no momento em que tal passagem mais for golpeada como signo iniciático do ali-aconteceu.

Djemila, a quem o amante corteja se apropriando de seu valor de não-casual através de uma informação de ônibus que se desvincula de suas reais intenções, oferece a ele tanto desse “verdadeiro” que lhe foi simultaneamente mostrado e extraído, o de uma relação consigo mesma exponencialmente mais feliz, que, para Luc, cujo costume é o de uma felicidade a ser buscada sempre alhures, a mulher não demora a se tornar uma coisa a ser evitada: não uma igual, uma maior; não um sintoma do feliz, mas um lampejo exigente demais para aquele que de todo modo não está mais aqui, em felicidade. Mas não queremos dizer, afinal, que Luc é Orfeu. Antes que, para ambos, escolher o amor e escolher amar custam alto, se desejam coexistir num mesmo plano. Custam um amor, e não menos um comparecimento.

Garrel transfere a condição oscilatória das posições de Prisioneira e de Fugitiva – como vistas em Proust, Tolstói, Woolf, as Brontë, numa lista volumosa – a um homem provinciano tipicamente gerado da confusão de pensamentos e práticas do pós-68. Surpreende Olivier Assayas ter realizado, em 2012, Depois de Maio, outro filme-paradigma deste tema dentro da tradição francesa dos enfants da nouvelle vague? É como se depois dela, o cinema do primeiro tratasse de, de uma forma ou outra, simulá-la, revisitá-la. Filho de uma tradição de marceneiros cuja garantia de formação escolar superior significa também o pouso da liberdade e da solidez dentro da linearidade familiar – masculina, é importante frisá-lo –, ele no entanto vive encontros sexuais intitulados de “busca pelo amor” à condição de que os esconda do pai, confirmando para si mesmo que a sexualidade é o desvio, o maquinário a ser temido. E a análise, ou melhor, qualquer situação analítica só aparecerá quando a máquina edipiana for reproduzida sorrateiramente dentro da própria casa – uma que ele só agora, curiosamente, “rege”. Sua terceira amante traz um colega, um infiltrado de acordos também sub-reptícios, ao drama cristalizado naquele rosto de pai que os Garrel, espécies de herdeiros desta onda-cineastas, evocam como quem põe fantasmas em campo: ele olha (e vê, o que é ainda mais perfurante pelo close) o filho na medida em que exige que reconheça o valor como transferência; exige, sem dizer, que ele faça o mesmo que este “teria feito”: que expulse aquela mulher da cama.

Um pai sem nome, diferentemente de todos os outros personagens. Um pai sobre o qual, ainda que não valha insistir sobre outros dramas mais ou menos biográficos, soa como pais de outrem por meio de uma chave de acesso que lhe retira a biologização da transferência, sem no entanto privá-lo de um poder dizer de ordem tão elaborada, que sua aparência de naturalidade é ainda mais atestada por esse mesmo traço de repetição: a função-pai, que não é o mesmo que ser pai. Interligados por uma profissionalização como se o horizonte de vida moral e libidinal estivesse todo concentrado ali, e na adaptação desse lugar de ofícios aos termos econômicos da geração corrente, o que Luc ganha escondendo do pai seus encontros sexuais, e o que o pai logra dele escondendo uma doença terminal, operando para encontrar o mesmo ato futuro de valoração e entendimento mútuo, acaba privando-os, ainda que de formas ligeiramente distintas, de, de fato, viver casamentos, ou mesmo casos amorosos, de maneira pacífica. Pouco importa a Luc que seus flertes tenham empregos ou expectativas profissionais, contanto que não estejam em seu caminho quando ele às suas necessitar atender.

É uma luta de real pubescente para a qual só há idas e desejos de instante, para a qual duas conquistas impraticáveis são forçadas à mútua convivência (e conivência), sendo que uma delas é humana, e a outra institucional-social. Que sua ética não nos pareça leviana, portanto, apenas no âmbito contratual mais superficial. Quando numa cena de passos eriçados e ocultações físicas salientes, dos corredores à cama, sentimos permanecer suspenso, em plano, os signos da conquista e do cortejo, colidindo num êxtase que não só é só o sexual, mas também o início da latência cega que cair de amores implica, é por um fator “de fora” e “de dentro” que sua decisão em expulsá-la de casa por não corresponder ao convite sexual àquele momento, sendo tanto afetiva quanto ética, atinge um outro lugar, “microfísico”, um campo de políticas cujos lances têm dificuldade em soar como universais, mas para o qual a guinada de olhares consegue facilmente desenvolver e desvelar um sistema análogo – entre as práticas íntimas de libertação sexual e as práticas sociais dos gêneros, jamais, pelo menos não aqui, institucionais, mas seguramente, de outras formas, institucionalizadas.

Talvez seja por isso que o cinema, ainda que não tenha se resolvido de forma pacífica – e talvez não precise – com reconhecimentos estáveis sobre as imbricações do político como intenção única da imagem montada, detém uma posição privilegiada quando o assunto com o qual a imagem se concerne, sem deixar de estar fora dela para se resolver diegeticamente, intui somente a partir daquilo que lhe é externo o reconhecimento sobre os lances que dão encantamento ao jogo. Recebida uma notícia de pesar, a reação do aprendiz de marceneiro é fraturar-se em tríptico: há o que resta – de um homem –, e isto não o dizemos metaforicamente, posto que, estrategicamente, para a vida, ele se encontra dali em diante menos provido de meios ainda incalculáveis; há uma falha de estrutura amorosa replicada nele e capaz de pôr todo o seu ser em xeque, todo o seu ser-erótico estando plenamente cindido; e há aquilo que o narrador toma uma insólita licença para dizer, tendo até ali falado somente como aquele substrato de nós que realiza o ato mecânico de passar páginas de um livro numa ocasião concentrada: “Luc descobre que não acredita em Deus, e que seu papai não está num lugar como o céu”. Ora, o efeito narrativo não poderia ser mais extremo. Plástico na persistência das interjeições do espaço sobre o tamanho dos sujeitos, o preto e branco se outorga aqui os mais prolíficos intercâmbios entre um espaço de reais e um espaço de imaginários escancarados.

A impraticabilidade da alternância de dois casais dentro de uma mesma casa, não bastasse as gravatas vistas do lado de fora da porta e que serviam de sinalização da ocupação temporária da casa, espécie de aluguel dentro do aluguel, é agora vista de dentro e durante um dia ensolarado, e a escuridão dos móveis recai sobre os ombros, olhos e posições de cada um deles com a densidade ocupacional de uma expulsão de ainda outra ordem. Não é somente que, dali, por exemplo, ele resumisse alguns tantos e incertos anos de descrença em Deus numa confirmação providencial; este tipo de pensamento implicaria, por consequência, que acreditar ou não (em Deus, no amor, em si mesmo) é algo que acontece só algumas e determinadas vezes, os espaços “em branco” estando reservados para nossa não-crença não se percebendo não-crente. Descrita como aquela que viria para colocá-lo num mesmo patamar de atuação microfísica, como aquela que seria páreo para ele, essa derradeira amante participa daquela vida com duas vantagens: sem precisar verdadeiramente pedir entrada (ele não a desobedeceria, àquela que é episódio inédito), ela carrega o rapaz Paco como confirmação explícito-sorrateira de que nunca estará realmente ali, de que aliás nunca fora de lugar algum, como ele, que não é da marcenaria, nem das mulheres, nem de si mesmo. Ou seja, ele só pode desacreditar dela admitindo que des-crer existe, que mulheres, roupas e divindades participam da mesma cadeia de abandono – reencenando um niilismo que logo se tornará adolescente.

Pior: a costura daquelas três amantes, sintática, se assim pudermos colocá-la, significaria, quem sabe, que uma mulher melíflua e duvidosa sendo sequência de “uma Penélope” e de uma segunda, abortiva e obcecada, poderia pontuar com finalmentes a trajetória de um homem incapaz de ver a si mesmo, tendo perdido Deus em definitivo no momento em que a morte de seu pai retira dele, e do mundo dele, a capacidade analógica de fazer-se à imagem de alguma coisa. Um acontecimento de descrença cujo funcionamento, por sua vez, se assemelha à lógica da puberdade, já o dissemos, e o segundo enunciado soará tão cálido e penoso quanto “verdadeiramente” geracional. Não há mais lugar bom para o qual ir. A fruta das chegadas sem destino chega a Luc pela impressão de uma estação percebida pela primeira vez. Um primeiro inverno. Uma curiosa e primeira perda – aos trinta e quantos anos? A inconstância do visível, ter de fingir à cama, ou mesmo não saber se o espaço do dia reservado à cama é puro fingimento. Confusão fetal.

Essa inevitabilidade da submissão às lógicas mesmas de deserção e de submissão aos contratos entre o sexual e o social, sobretudo porque há um indubitável “ar” psíquico atado a uma “atmosfera” de resquícios políticos no cinema de Garrel desde seu início, parece reacender de maneira cada vez mais contemporânea a reincidência da insuficiência psicanalítica para tratar de nossos males gerais, bem como a reincidência do eterno-retorno de vocabulários e estratégias psicanalíticas como dominantes nas terapias e abordagens geracionais, sexuais e sociais, por mais que isto pareça sustentar uma contradição. “Isto”, aliás, com duas ressalvas: uma de que o contemporâneo seja, afinal, aquilo que salta os tempos para nos concernir por uma insurgência, e é perceptível o quanto um cineasta tão pertencente às esferas burguesas de temática e apreciação tem conseguido, ao menos, fazer circular personagens de outros estratos sociais, com problemas concernentes a tais posições; e uma outra de que, sendo a França e o Brasil os dois países mais explicitamente preocupados e praticantes da atividade psicanalítica no globo – de forma relevante e problemática, é o que queremos dizer –, é também louvável que Garrel implique em seus personagens uma querela quiçá preciosa à arte cinematográfica enquanto forma de releitura e multiplicação das possibilidades de olhares sobre traços históricos e sociais: trabalhadores e trabalhadoras (é curioso que um filme também possa nos confirmar a eficácia linguística de uma singular letra) não pertencem e não deveriam pertencer ao mesmo tempo tipo de consideração econômica, imagética, teórica, sociológica; e o mesmo recorte de classe se aplica aos gêneros. É preciso ser de todo lamentável que a um homem custe o corpo de três mulheres e uma criança para um aprendizado cuja não-competência aqui não teria lhe privado de mais de cinco entes queridos, não fosse ele a réplica de seu pai, o atendimento repetido a um chamado de alguém que se recusou a estar presente ‘comigo-por-inteiro’. A biografia nos alcança pelos pés. Filmes não são só filmes, ao final. Onde faltarem espelhos, leitores, consciências, esperemos que haja a insistência derradeira deles.


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