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Uma vela acesa à luz do dia: estados alterados da ficção no cinema de realizadores indígenas

Quando o protagonista indígena de Uirá, um Índio em Busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973) decide deixar a família para trás e partir numa corrida desenfreada em busca da divindade que o fizera abandonar a aldeia, todo o filme muda subitamente de tom, abandona o compasso da ficção realista que acompanhava o percurso de Uirá e adquire por um momento as texturas visuais e sonoras de um conto mitológico. Em Pirinop – Meu Primeiro Contato (Mari Corrêa e Karané Ikpeng, 2007), a reencenação da expedição dos Ikpeng à aldeia dos Waurá é montada em câmera lenta, com música extradiegética, num tom radicalmente diferente da encenação dos depoimentos rememorativos que entrecortam o retorno ao passado. Quando Justino começa a ouvir ruídos estranhos na floresta e a padecer do sintoma-título de A Febre (Maya Da-Rin, 2019), o filme pouco a pouco adquire o clima de um horror sobrenatural, até que o confronto na mata deflagre um mergulho nos códigos do cinema de gênero, para depois retornar ao realismo sereno das conversas entre a família.

Os exemplos poderiam continuar, mas já é possível perceber o que os une. Em vários momentos em que o cinema brasileiro buscou se aproximar dos mundos indígenas, sua tendência foi a de traçar limites entre os regimes de encenação no interior de um mesmo filme. Quando os documentários recorrem momentaneamente a encenações ficcionais, há uma clara diferença de tratamento entre o passado reencenado e o presente da rememoração. Quando as ficções recorrem ao mito, há uma evidente ruptura entre o tratamento realista da história e o sobrenatural momentâneo inspirado nas cosmologias ameríndias.

Há outras possibilidades, claro. Muito já se escreveu sobre a imensa riqueza das formas de encenação de Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006), com seus constantes atravessamentos entre passado e presente, memória e performance, preto e branco e cor, historiografia e delírio, alegoria e crônica. Nas múltiplas formas inventadas por Tonacci para narrar o percurso de Carapiru, o estatuto narrativo do filme permanece, ainda hoje, misterioso e desafiador.

Caso queiramos encontrar parentescos com a obra-prima de Tonacci, é preciso reorientar o olhar para lugares ainda pouco explorados pela crítica de cinema. Ao longo da última década, foi no cinema feito por coletivos indígenas em várias partes do território que chamamos de Brasil que surgiram entre nós os mais instigantes entrelaçamentos entre regimes narrativos e formas de encenação. Em várias iniciativas espalhadas pelo país, esses filmes engendraram formas porosas, contaminações imprevistas entre rememoração e reencenação, contiguidades renovadas entre cotidiano e ritualidade, contágios intensos entre ficção e documentário (se é que ainda é possível, diante desses trabalhos, manejar essas categorias forjadas pelo pensamento ocidental).

Na abertura de Bicicletas de Nhanderú (Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, 2011), os jovens realizadores indígenas se sentam para ouvir os mais velhos da aldeia sobre a relação de seu povo com as divindades. Diferentemente de Uirá, não há nenhuma solenidade no tratamento do mito: quando o xamã diz que, na cosmologia mbyá-guarani, eles são como bicicletas dos deuses, é possível ouvir a risada de quem filma. Tampouco há um abismo entre filmadores e filmados: no último plano do filme, um dos realizadores se aproxima com sua câmera para receber a baforada ritual e continuar a filmar sob a proteção dos deuses. Ao longo de todo o filme, a cosmologia da comunidade está entranhada no tecido do filme, vivida cotidianamente e reinventada nas imagens. Um exuberante plano geral da queda de um raio é secundado por uma mulher que pergunta se sobrou um pedaço do galho atingido pela descarga elétrica, pois ela quer fazer colares para os homens. É com esse mesmo desassombro que Bicicletas de Nhanderú trabalha o tempo inteiro.

Se no início de Pirinop há um momento preciso em que a comunidade assiste às reencenações do passado na aldeia e reage às cenas, opinando sobre as atuações, em Bicicletas de Nhanderú qualquer cena em andamento pode abrigar um comentário sobre o processo do filme. O fazer fílmico é assunto comunitário, permanentemente reflexivo, amalgamado a todo o resto. A ficção também surge sem alarde, brota da cena documentária e a transforma por inteiro. Um menino vai apanhar lenha na fazenda ao lado, território dos brancos, e começa por se dirigir à câmera para contar sobre a derrubada da floresta, que matou os espíritos das árvores e os deixou sem caça. De repente, começa a lançar impropérios contra fazendeiros invisíveis, reencenando o dia em que foi perseguido pelos brancos, metamorfoseando um ato de fala em outro de natureza diferente, de um segundo a outro do filme.

Nada em Bicicletas de Nhanderú corresponde a um regime de separação entre mundos. Volta e meia, numa caminhada para buscar lenha ou comprar sabão, os meninos começam a gritar o refrão de Beat it e a imitar as coreografias de Michael Jackson. A brincadeira continua ao longo de todo o filme. É então que, a certa altura, a montagem decide entrar na dança e faz coincidir no plano o som da versão de Milton Nascimento para a canção, a embalar a performance das crianças no pasto da fazenda vizinha. Mas a trilha sonora do videoclipe momentâneo nunca se separa dos ruídos do vento ou da fricção dos corpos. Tudo aqui é impureza, contágio, fertilização.

Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, 2016) é, à primeira vista, um documentário sobre as retomadas de terra pelos indígenas guarani-kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul. Para contar a história dos conflitos recentes com os fazendeiros da região, no entanto, os realizadores forjam uma miríade prodigiosa de formas de reencenação. Uma sequência começa com um rapaz caminhando pela mata, com um colar de folhas a adornar-lhe o peito nu. Enquanto o homem com a câmera narra as maneiras inventadas por eles para se esconder dos brancos, o ator repete os gestos narrados, criando uma contaminação in situ entre rememoração oral e reencenação gestual.

A tensão crescente culmina numa sequência em que vemos um grupo de meninos e meninas escondidos na mata. Pelos diálogos, entendemos que a cena retomada se passou à noite, mas o sol ainda está alto na imagem. Um ruído na mata precipita a transformação súbita: eles saem em disparada, para fugir dos brancos imaginários que espreitam no extracampo, com a câmera em seu encalço. Já não há narração verbal: estamos no reino da ficção, com a urgência de um filme de ação. Mas aqui não há música, nem câmera lenta, nem noite americana, nem nenhuma das convenções de gênero tantas vezes associadas aos relatos de perseguição. A noite da floresta, tantas vezes explorada como ambiente propício aos acontecimentos extraordinários – como em A Febre –, aqui é o cenário de uma ficção renovada, que apenas se desprende da não-ficção. A respiração de quem filma participa desse teatro a céu aberto, à luz do dia.

O entrecho termina com dois rapazes reunidos ao pé do fogo. Um recria com a voz os ruídos das motocicletas e dos tiros dos capangas dos fazendeiros, e refaz em português as ameaças dos brancos. O outro responde, em língua nativa, recriando os diálogos entre os indígenas vitimados pelo ataque recente. Ainda é dia, mas basta a luz de uma vela solitária para instalar o teatro da memória.

Em Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito (Sueli Maxakali e Isael Maxakali, 2019), um prólogo encena o mito fundador do ritual das mulheres-espírito na aldeia maxakali. Embora a cena seja decupada como uma ficção convencional – plano, contraplano, variações de escala -, as ações são encenadas à luz do dia, sem música, e com um estilo de atuação que incorpora o frescor do cotidiano e o prazer do jogo. Se em Pirinop, além da música e da iluminação especial, era preciso que os atores Ikpeng se despissem e adotassem a pintura de guerra para reencenar o passado anterior ao primeiro contato com os brancos, aqui os figurinos são muito semelhantes no prólogo ou no restante do filme. Basta um adorno diferente na cabeça e a ficção de época já está instalada.

Após o prólogo, o filme vai se dedicar a testemunhar – e a recriar – um ritual periódico que dura sete dias, desde a chegada das Yãmiyhex à aldeia até sua partida para debaixo da terra. Na performance comunitária que revive o mito fundador, a câmera participa ativamente da cena: não apenas decupa o ritual e o recria para os olhos do espectador, mas intervém em seu desenrolar como uma força de ativação, até o momento em que a voz over de Suely Maxakali – que comenta, rememora, traduz, dirige, num imbricamento prodigioso entre atos de fala – se espanta: “a Yãmiyhex quase esbarrou na minha câmera”. Quando as Xupapõunãg (lontras-espírito) chegam à aldeia e começam a arremedar os movimentos da câmera com pedaços de pau, incorporando à sua maneira o registro da festa à própria festa, é porque o ritual indígena e o ritual do cinema já haviam começado a se misturar há muito tempo.

E se a batalha ritual se transforma em comédia física, é porque o riso extravasa por todos os lados, envolvendo toda a comunidade na fabricação da cena. O que mais impressiona no filme é justamente a contiguidade do ritual com tudo o que acontece ao redor. Aos olhos do espectador não-indígena, não há limites entre o que é a cerimônia religiosa e o que é a vida de todos os dias. Assim como no prólogo o frescor do cotidiano atravessava a ficção de época, aqui tudo se torna ritual, pois toda a cena é tomada por um encantamento irresistível. Quando as mulheres mergulharem na água, perto do fim do filme, já não saberemos se estamos no território do mito, de sua atualização ritual ou de sua reinvenção cotidiana.

Esse exuberante manancial de formas inventado ao longo da última década aponta caminhos novos não apenas para o que se convencionou chamar de “cinema indígena”, mas para o cinema em geral. O que os realizadores e as realizadoras indígenas têm nos ensinado é que há muitas outras maneiras de forjar atravessamentos entre vida e sonho, mito e história, ficção e documentário. A cada filme, eles e elas nos convidam a nos apaixonar um pouco mais pela mistura.

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Este texto foi produzido em parceria bilíngue com Field Notes, uma revista online dedicada à escrita original sobre a realização cinematográfica de não-ficção em todas as suas formas, publicada pelo projeto Field of Vision. Para ler a versão em inglês, clique aqui.


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