Berlinale 2019 e suas despedidas

A sexagésima nona edição do Festival de Berlim, ou Berlinale, como é geralmente conhecido, certamente será marcada por um instante de inflexão na sua história. Após dezoito anos no centro dos holofotes da curadoria, Dieter Kosslick anunciou a sua despedida. Ficará à sombra e deixará de lado o chapéu, o cachecol vermelho e o bigode que legaram charme à sua marca visual. Como ocorre na maioria dos festivais de cinema de renome internacional – vide Cannes e Veneza – as direções artísticas são longevas e… CONTINUA

O convívio com uma heroína de pele preta

Juliana (Grace Passô) bateria à porta com insistência. Chamaria por mais um dos moradores das tantas casas que visita para verificar prováveis focos dos mosquitos transmissores da dengue. Nessa casa, nessa sequência, ela não precisou, como de costume, chamar ninguém; a porta já estava aberta. Juliana sentiu-se à vontade, sentou num sofá aconchegante, enquanto, em off, vem uma voz suave, que pergunta se ela quer café. Polida, Juliana nega, diz que não precisa. “Precisa sim”, rebate, carinhosamente, a anfitriã. Comenta que há muito tempo não… CONTINUA

Um funeral ao patriarcado latino-americano

Estamos no México, e Fernanda Rivera, a protagonista do documentário Antígona, chama de maestro quem no Brasil nomearíamos como professor. Confesso uma ligeira indecisão sobre qual dos vocábulos prefiro. Maestro denota um saber como posse, é asperamente nobre, presunçoso, hierárquico, mas também transmite, nas suas rápidas sílabas, uma notável tradição. Professores seriam sujeitos a disseminar práticas, espalhar ideias, conceitos – como se fossem pares, um tanto horizontais, das descobertas dos alunos. Um pouco moderno, com pitadas mundanas. É justamente a oscilação, meio sacra, meio profana,… CONTINUA

A espera, a predação e a escuta da História

Filmar a borda. Perfilar a margem. Curiosa, notável, a primeira sequência de Zama já sintetiza bastante da atmosfera que permeará toda a película de Lucrecia Martel. Vê-se o protagonista à beira de um larguíssimo rio. À espreita. À espera. Nada ocorre: ninguém chega, ninguém sai. Apenas Diego de Zama (Daniel Gímenez Cacho) lá permanece, imbuído da seriedade das suas vestimentas de um digno representante do rei de Espanha, meio abandonado, meio perdido nas regiões coloniais hoje próximas ao Paraguai. Realça-se um rio inóspito. Suas pedrinhas,… CONTINUA

Na órbita dos cínicos

Raramente curadores são protagonistas. Seja em filmes, peças, novelas ou romances, um eventual protagonismo dessas poderosas personas da cultura contemporânea tende a ocorrer pelas coxias, entre os bastidores, distante dos holofotes. Em The Square – A Arte da Discórdia acompanha-se uma sequência de enganos que circundam Christian (Claes Bang), curador de um prestigioso museu em Estocolmo, na Suécia, capital dessa monarquia já acostumada a ser o cenário de flashes mundo afora num dos principais festejos ocidentais de cada ano, o Nobel. Mais do que retratar… CONTINUA

A lírica do exílio nos filmes de Leonardo Mouramateus

# What the hell am I doing here? O escape. Vazar. Dar no pé; sair fora. Os primeiros curtas-metragens de Leonardo Mouramateus retratam anseios como esses, nos quais seus personagens aspiram por terrenos bem distantes. Mauro em Caiena (2012) já sugeria algumas pistas. Em over, a voz do diretor evoca uma carta a um tio que fugiu dos “prédios feiosos de Fortaleza”, embrenhou-se clandestino pela Amazônia, tornou-se um imigrante ilegal, um refugiado. Nem aqui, nem lá, e ainda por voltar – a passar por um… CONTINUA

Os fantasmas da história tocados por luvas de pelica

Há uma peculiar dialética entre proximidade e distância que ronda a maior parte dos documentários de João Moreira Salles. Seus filmes de retratos, com contornos biográficos, como Nelson Freire (2003) e Entreatos (2004), alternam-se entre instantes de uma aproximação mais reservada e uma forma de olhar que resvala em certa intimidade. Lembro do close do cigarro a descansar no cinzeiro, lentamente, num momento franco, confessional, do tímido pianista Nelson Freire; das falas de Lula, no seu jatinho de campanha eleitoral, numa conversa um tanto distinta… CONTINUA

Qual é a ética diante das imagens violentas e perversas?

Hotel Nacional, novembro de 2001. Estamos numa das salas de debates do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Na plateia, há cerca de trinta pessoas, entre realizadores, jornalistas e críticos frequentes no festival, como Luiz Zanin Oricchio e José Carlos Avellar. Na mesa, a mediação estava a cargo de Maria do Rosário Caetano e discutia-se quais seriam os motivos da “efervescência da cena cinematográfica pernambucana no contexto do chamado Cinema da Retomada”. Em certo momento, o cineasta Geraldo Sarno, que estava na plateia, pede a… CONTINUA

O lusco-fusco neon de Chin e Lon

Uma lâmpada solta, que pisca, oscila pela sala num fio e quebra-se no vidro. Uma dança interrompida pela falta de energia elétrica e que continua junto ao acender e apagar da flâmula de um isqueiro. Neons verdes e brancos de uma publicidade que ilumina as ruas escuras de Taipei. Em boa parte dos seus filmes, Edward Yang constrói cenas recorrentemente marcadas por uma luz trêmula – ora presente, ora em desaparição. É uma luz que percorre o espaço, os objetos, os personagens, e está prestes… CONTINUA

O abandono da política

Neblinas. Fumaças artificiais. O cinza das penumbras esticando-se por uma cidade. É no mínimo inquietante ver como essas imagens são similares, se repetem e se complementam em três obras aparentemente tão distantes como 300 Milhas, Alipato – a Brevíssima Vida de um Malandro e Penúmbria. Em formatos diversos, esses três filmes traduzem em cenas, ora documentais, ora ficcionais, realidades imediatas vividas por países como Síria, Filipinas e Portugal. Em comum, a falta de horizontes, certos flertes com a distopia, e uma maneira de olhar para… CONTINUA