o que há em ti modelocinetica 2020

Uma educação pela fenda e depois

Em 16 de março de 2020, ainda no início das medidas de isolamento em decorrência da pandemia no Brasil, um episódio aparentemente fortuito capturava a atenção do país: um brasileiro de origem haitiana – do qual ainda não sabemos sequer o nome – se infiltra entre uma pequena multidão bolsonarista para se dirigir ao presidente e sentenciar: “Bolsonaro, seu governo acabou”. A frase ressoaria nacionalmente, mas também a cena que a viu nascer: esse homem negro, rodeado por uma aglomeração branca que repete “mito, mito, mito”, tem a astúcia e a coragem de colocar-se em perigo para dizer o indizível. É bem provável que quem quer que tenha visto esse registro não o tenha esquecido tão cedo: as ressonâncias históricas, poéticas, políticas que o atravessam são inquietantes demais para fazê-lo desparecer da memória. Mas seria preciso que um cineasta tomasse o episódio nas mãos e traçasse um itinerário dos ecos. Esse cineasta é Carlos Adriano, um mestre do cinema de reapropriação de imagens que temos a sorte de ser brasileiro.

Esse fragmento de história viva é um daqueles arquivos preciosos, sobre os quais o cinema baseado no reemprego de imagens e sons é capaz de erguer uma obra. No entanto, o que Carlos Adriano encontra no episódio não é exatamente uma cena exemplar, mas um intervalo, uma fissura paradigmática, tão paradoxal quanto fundadora. Nas reações de Bolsonaro em cena, o intervalo é a reafirmação renitente da distância, do “não estou te entendendo” ao “volta para o Haiti”. Nas palavras do brasileiro-haitiano sem nome, o que há é a possibilidade de fazer essa rachadura vibrar, sem que ela signifique a construção de um abismo intransponível: “Eu venho do Haiti. Eu sou brasileiro”. Na vírgula ou no ponto que separa uma frase da outra, onde Bolsonaro só enxerga a oportunidade para mandá-lo de volta para casa e excluí-lo da partilha comum, Carlos Adriano enxerga uma premissa formal capaz de fazer o contrário: reintroduzir essa presença na comunidade das imagens, traçar com elas um itinerário insuspeito.

É justamente nessa aparente incongruência da justaposição das frases onde Adriano recolhe a energia de seu filme. O que há em ti? será inteiro atravessado por uma voracidade associativa que continua o gesto ambivalente do refrão de “Haiti”, a canção oitentista de Caetano Veloso e Gilberto Gil: “O Haiti é aqui/o Haiti não é aqui”. Entre o ser e o não ser, entre o que há e o que não há em ti, Adriano multiplica exponencialmente as possibilidades de relação entre o Haiti e o Brasil: desde as mais luminosas (o filme começa com um poema do brasileiro Sousândrade que evoca a revolução haitiana de 1791-1804) até as mais terríveis: foi para lá que o exército brasileiro exportou em 2005 e 2006 as práticas impostas pelo militarismo às favelas daqui há tantas décadas, para aperfeiçoar as estratégias de extermínio e depois retornar ao Brasil trazendo o que aprendeu no Haiti para aplicar na intervenção federal de 2018 no Rio de Janeiro. Não por acaso, os comandantes da expedição haitiana – cuja ação desastrosa fora condenada pela ONU à época – hoje compõem o alto escalão do governo brasileiro.

Mas se o furor associativo tem algo de pedagógico – trata-se, de longe, do filme de Carlos Adriano em que há mais informações, cartelas, fatos concretos –, sua prática é a de uma educação pela insistência na fenda, e não pelo preenchimento. Se na educação pétrea de João Cabral de Melo Neto o desejo era de frequentar a resistência dos materiais (“captar sua voz inenfática, impessoal”; “sua carnalidade concreta”), na de Adriano se trata de esburacar a pedra, rachar a história e as imagens para habitar suas fissuras. A concretude do arquivo é, de saída, esfacelada, seja na inversão das polaridades do preto e branco, na viragem das posições, nos reenquadramentos. Desde a desconstrução da canção – da longa letra de “Haiti”, Adriano retira uns poucos versos e fragmentos do arranjo para reatá-los diferentemente, repeti-los, justapô-los a outros sons e imagens – até as múltiplas dilacerações do quadro. Se chegamos a ver a cena em sua integridade, primeiro precisaremos acessá-la aos pedaços simultâneos na tela, do gesto das mãos à presença do rosto, como em composição cubista.

Diferente da letra de Caetano, cuja ênfase se volta para o Haiti como uma espécie de epítome da miséria, como provocação para pensar a miséria brasileira, Carlos Adriano – como Alejo Carpentier – reconhece na revolução haitiana comandada por Toussaint L’Ouverture a partir de 1791 não apenas a fundação de uma América Latina verdadeiramente livre e independente, que começava já com a abolição da escravatura e a instauração de uma República com um presidente negro, mas a possibilidade abortada de uma outra modernidade, mais avançada do que brasileira ou do que a europeia (“Essa ideia que a França destruía / Realizou-a o negro do Haiti”, diz o poema de Sousândrade). Se o Haiti não é aqui, é também porque a resistência ao domínio colonial lá encontrou uma possibilidade mais vibrante do que entre nós. É também porque foi preciso que a sentença de morte do governo Bolsonaro viesse de um brasileiro de origem haitiana.

Mas em Adriano a convocação dos arquivos não vem para promover uma releitura consequente da história – como em Harun Farocki, por exemplo – e sim como um verso inesperado, uma bomba polissêmica que reabre a história em todas as direções. “Ho Chi Minh é o Toussaint L’Ouverture da Indochina”. A frase é do grande ator negro estadunidense Paul Robeson – astro, entre outros, do Corpo e Alma (1925) de Oscar Micheaux –, pronunciada em 1954, e dispara no filme uma convocação de outras histórias abortadas – em 1934, Robeson e Sergei Eisenstein preparavam em Moscou um filme sobre a revolução haitiana que nunca chegou a sair do papel –, além de apontar para a possibilidade de muitas outras (anos depois, a resistência à guerra do Vietnam encontraria nos militantes negros estadunidenses sua formulação mais forte, condensada no título do filme de David Loeb Weiss de 1968: No Vietnamese Ever Called me Nigger).

E se a educação começa pela fenda, ela continua na dança. Todos os filmes de Carlos Adriano são maneiras de fazer o olho dançar. Diante deles, o corpo experimenta sempre um jeito novo de se colocar em movimento diante de uma coreografia que é violenta e febril, na mesma medida em que é generosa e tomada de entusiasmo – pelos materiais, pelas possibilidades de combinação, pelo prazer de insistir num encontro impossível. Como Remanescências (1997), O que há em ti dança sobre um abismo irrecuperável – e é nessa dança que ele pode ser capaz de nos ensinar algo. Antes de proferir um discurso, é preciso compor um ritmo – não há cineasta brasileiro mais musical que Carlos Adriano –, fazer nosso corpo vibrar numa frequência imprevista, saltar para fora das maneiras de olhar que nos foram herdadas, até que seja possível desaprender a ver – para, enfim, ver novamente.

É assim que convivem no filme um tratamento responsável da história factual – as imagens dos dois massacres comandados pelo exército brasileiro são datadas com precisão – e uma evocação poética mais livre, que prima pelas composições heteróclitas entre o aqui e o alhures. Se Ho Chi Minh é o Toussaint L’Ouverture da Indochina, Paul Robeson é “o Maiakóvski negro”. Toda essa atenção aos nomes faz lembrar que a história do cinema é também pontuada por pequenas obras-primas do acidente poético. Em Liber Arce, Liberarse (1969), os cineastas uruguaios Mario Handler, Mario Jacob e Marcos Banchero, integrantes da Cinemateca del Tercer Mundo, partem da coincidência extraordinária entre o nome de um estudante assassinado pela polícia montevideana – Liber Arce – e o lema fundante daquele momento do cinema e das lutas latino-americanas – Liberação – para compor um filme que é, simultaneamente, um réquiem e um canto de guerra. Às imagens dos protestos que se seguiram à morte de Liber Arce vêm se juntar as imagens das lutas de liberação de todo o Terceiro Mundo, do Vietnã à Argentina. Se o filme anterior de Mario Handler, Me Gustan los Estudiantes (1968), era inteiramente assentado sobre a canção de Violeta Parra, na banda sonora de Liber Arce não há música, ruído ou palavra de ordem. Esse lamento silencioso, entretanto, tem um ritmo tão enérgico e contagiante quanto o de Now (Santiago Álvarez, 1965), o tronco gerador de todo o cinema de intervenção feito entre nós. O silêncio de Liber Arce é a forma do grito.

Em O Que Há em Ti, Carlos Adriano reata com essa tradição no mesmo movimento em que a perturba. Seu ritmo não é o do crescendo emocional, mas o da instalação vertiginosa no intervalo. Para gestar o canto, será preciso antes destruí-lo: fragmentar a canção, retalhar os arquivos. Diante das imagens violentas, violentar a imagem: retorcer os vermelhos do sangue, interpor invisibilidades e zonas de sombra no massacre. Nesse sentido, o novo filme continua a poética fragmentária e intervalar que está presente em todo o cinema de Adriano, e que encontra um ponto culminante em A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha (1998). Por outro lado, não há como negar que aqui também há um transbordamento emocional comparável ao do primeiro filme da série Sem Título. Em Sem Título #1: Dance of Leitfossil (2014), o “Desfado” de Ana Moura dá o tom para a dança das imagens de Fred Astaire e Ginger Rogers, na mais desbragada das canções de amor que o cinema experimental já se permitiu compor.

Um cinema partido, fissurado, rachado, sim. Mas também direto e inadiável como uma canção de amor. Canção sincopada, mas melodiosa; quebrada por dentro, mas ainda assim capaz de nos falar diretamente ao coração. Em O que há em ti, é como se o coração amoroso do cinema recente de Carlos Adriano saltasse da intimidade dos últimos filmes para a esfera pública, como se ele agora se dedicasse a compor uma carta de amor a um desconhecido, que é também dedicada a um povo e a um país. Na ausência do rosto do brasileiro-haitiano rebelde (no registro, nunca o vemos de frente), será preciso interpor as faces altivas de um povo em construção, nas imagens recuperadas de Haïti: Le Chemin de la Liberté (Arnold Antonin, 1974) que brilham em sua plenitude depois dos créditos finais, numa sorte de epílogo utópico embalado pela música. E se pudéssemos substituir a evocação amena do Havaí em outra famosa canção de Caetano, diríamos talvez: que esse Haiti seja aqui.


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