Heróis e Vilões

Fragmentado vai contra um princípio básico do cinema de M. Night Shyamalan: o equilíbrio. Da concepção básica do seu personagem principal – uma elaboração que preza pela alteridade tanto em sua construção mitológica como em sua dimensão performática – ao próprio desenrolar da narrativa, existe uma constante diversidade de tons que implica da constituição formal a uma variante metafísica daquele mundo. É claro que a variação de gêneros é uma das maiores, e mais bem exploradas, características do diretor. Mas Fragmentado subverte um senso de… CONTINUA

Meu coração está perdido em sete bocados

“Os anjos, pelo som da voz, conhecem o amor de um homem; pela articulação do som, sua sabedoria; e pelo sentido de suas palavras, a sua ciência”. A frase de Emanuel Swedenborg recitada sobre a tela preta é o preâmbulo que abre Correspondências, um mote que serve de alicerce às experimentações de Rita Azevedo Gomes. Inspirado nas cartas trocadas entre dois poetas, Sophia de Mello e Jorge de Senna, entre 1957 e 1978, durante o exílio dele do regime salazarista, o longa-metragem tem como dispositivo… CONTINUA

O específico está morto; longa vida ao específico

1. Moonlight é uma história em três partes sobre a vida de Chiron, um garoto que cresce em um bairro barra pesada sob o sol de Miami. O filme é baseado em uma peça não-montada com o belo título In Moonlight Black Boys Look Blue, escrita por Tarell Alvin McCraney, que, como o diretor Barry Jenkins, cresceu naquela região. No texto que apresentava a mostra de filmes curada pelo diretor para o Lincoln Center, em Nova York, Jenkins estabelecia um paralelo entre a estrutura de… CONTINUA

A vingança é um prato que se come frio

A década de 1970 no Brasil terminou no dia 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito – indiretamente, através de um Colégio Eleitoral – presidente. Tancredo era o candidato civil de um país que vinha sendo governado por militares desde 1964. Apelidado “Tancredo Never” pelo general de plantão, João Baptista Figueiredo, sua vitória representou epifania na história brasileira. A partir dali, tudo mudou para continuar igual, porém sob a égide da “Nova República”, que se encerrou na deposição definitiva da presidente Dilma… CONTINUA

“Você está adiantado ou atrasado?!”

Uma das minhas mais queridas memórias de jovem espectador de cinema foi ver Buster Keaton dançando perfeitamente sincronizado consigo mesmo em The Playhouse (1921). Vaudeville e cabaré, em geral, dependem primordialmente de um simples atributo: timing. Pode parecer óbvio, mas quando música e dança se encontram, o timing também se torna uma grande questão. Damien Chazelle sabe uma coisa ou outra sobre isso. Seu primeiro longa-metragem, Whiplash – Em Busca da Perfeição (2014), ficou famoso pela cena que mostrava o personagem de J. K. Simmons… CONTINUA

Existo, logo enceno

Em tela preta, a voz de Troy Maxson (Denzel Washington) ressoa. Nos segundos iniciais, Um Limite entre Nós (Fences) se apresenta como um filme dedicado à palavra. Ao aparecer a primeira imagem, com dois personagens se movendo pendurados num caminhão de recolhimento de lixo, torna-se também um filme dedicado ao corpo. A soma do verbo com a carne é a base de sustentação do tour de force de Troy como um furacão de emoções que, no cotidiano simples e íntimo de um bairro de Pittsburgh… CONTINUA

Continuar

A franquia Resident Evil chega ao fim mais fiel do que nunca, tanto ao mote conceitual de sua proposta funcional – cada filme como uma fase, um sistema fechado de mandamentos formais e referenciais bastante específicos –, como à sua sempre oportuna vocação política. Afinal, nada mais revelador nos dias de hoje do que abrir um filme com a capital norte-americana completamente devastada e recheada de monstros e zumbis à espreita. O apocalipse, como descobrimos neste capítulo final, não é apenas o ensejo perfeito para… CONTINUA

Cuidado, madame

O título escolhido para o lançamento de La Cérémonie no Brasil, Mulheres Diabólicas, funciona como uma espécie de pista falsa sobre o sistema de relações que Chabrol constrói aqui, baseando-se no romance L’Analphabète, de Ruth Rendell. Pista falsa, pois o que pode haver de “diabólico” aqui sem dúvida não é algo da ordem individual, mas sim da teia de relações entre as pessoas e as coisas. A simples história de uma família burguesa que contrata uma nova empregada doméstica (Sophie, numa brilhante composição de Sandrine… CONTINUA

Cool story bro

Em um dos primeiros planos do mais novo filme de Sergei Loznitsa, um pequeno grupo de pessoas se põe à espera. Elas parecem turistas, mas não há pista de onde elas estão. A esta altura do filme, poderiam estar em qualquer lugar: na Disney, no London Dungeon, em um festival de música. Naquele grupo, chama atenção um rapaz em especial, que veste uma camisa com dizeres em letras brancas garrafais: “Cool story bro”. Essa afirmação parece ecoar uma citação hoje já cult no cinema francês,… CONTINUA

“E a tempestade que faz dobrar os dorsos dos operários nas ruas?”

Ficcionalização – “Qual é a primeira pergunta para abrir um negócio?”, pergunta uma professora do Sebrae. – “O que a gente gosta de fazer?”, responde uma aluna. – “Não, isso é um erro, um equívoco natural. Todo mundo gostaria de fazer o que gosta. (…) O que você precisa se perguntar é: o que o mercado precisa?”, direciona a professora. Esse diálogo poderia naturalmente existir na vida real, em qualquer palestra sobre marketing, empreendedorismo ou novos negócios. Apesar de crível, esse mesmo diálogo, em uma… CONTINUA