Zé do Caixão: uma entidade, muitas possessões

1. Vejo unhas. Não as minhas, que esbarram em algumas teclas e letras enquanto digito estas primeiras palavras. Vejo as alongadas e tortuosas unhas de José Mojica Marins, o diretor, o corpo que por tantos anos encarnou o mesmo personagem, hoje arraigado no imaginário do terror brasileiro e mundial. Dizem que unhas e pelos continuam a crescer mesmo depois da morte. Imagino-as, enxergo-as agora, as unhas do ator Mojica, esticando-se, enquanto seu corpo acomoda-se no caixão que, por ora, abriga-o. São unhas que respondem à… CONTINUA

Mojica, cronista atemporal da brutalidade

No dia 18 de fevereiro de 2020, a convite do projeto “Cinema Falado” em Belo Horizonte, fiz uma breve apresentação pós-sessão de À Meia-Noite Levarei Sua Alma a uma plateia no MIS Cine Santa Tereza. Na conclusão da minha fala, exaltei o fato de podermos celebrar a obra de José Mojica Marins com o realizador vivo entre nós, ainda que doente e fragilizado. Menos de 24 horas depois, chegava a notícia de que José Mojica Marins tinha morrido, aos 83 anos, em São Paulo. Não… CONTINUA

O autor é uma ficção? (trecho do livro “O autor no cinema”)

Este texto é parte da reedição recente do livro O autor no cinema, de Jean-Claude Bernardet, que conta com a colaboração de Francis Vogner dos Reis comentando de que forma sobrevivem algumas leituras de Bernardet. A parte aqui publicada corresponde aos itens 5 e 6 no capítulo “O autor é uma ficção?”, entre as páginas 204 e 212 da edição de 2018 pelas Edições Sesc. Nesse capítulo do livro, Francis comenta possibilidades de pensar formas de ser autor no contexto do cinema brasileiro, examinando os… CONTINUA

Olho para todos os lados e vejo sexo e sangue

Delírio O gozo em José Mojica Marins é sanguinolento. O desejo é carnal no sentido mais literal possível: seus personagens transam e se devoram. A ambiguidade lexical de “comer” é, na filmografia dele, uma espécie de mantra que nos conduz sombra adentro do seu microcosmo do horror.  No episódio Ideologia de O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), conhecemos o porão das maldades do médico e professor Oãxiac Odéz, um dos personagens que habita o universo de Marins, que flerta com canibalismo e sadomasoquismo. A realização de… CONTINUA

Mojica/Zé do Caixão/morto/vivo

O que pensa Zé do Caixão? O coveiro de uma pequena cidade no interior de São Paulo é visto pelos cidadãos como figurada assombrada, tipo folclórico que mete medo na população com suas ideias anticristãs. Zé se vê superior ao povo alienado pela religião, por Deus e por suas hipocrisias. O que o move é o desejo de encontrar uma “mulher perfeita, sem credo” para gerar o filho imortal. E assim, Zé sequestra mulheres e as coloca à prova de seus experimentos sádicos, chacoalhando a… CONTINUA

Sobre O Estranho Mundo de Zé do Caixão

Ocidente. Desde Tomé é preciso ver para crer. A ressurreição se torna fato com as chagas expostas. “Exposição” será o fato social da arte com o cristianismo, a imagem como ressurreição do objeto – a palavra divina, o corpo e o sangue do salvador – apenas se oferecida aos olhos do público. Veja e creia: a lei do espetáculo. O dedo do apóstolo que toca a ferida de Cristo é a quintessência da função da imagem: ver é uma função táctil. “Deixa eu ver?”. Esse… CONTINUA

Filme ruim, a poesia de um mundo

Perversão (1978) – produzido, roteirizado, dirigido e estrelado por José Mojica Marins – é um filme ruim. Nada contra. O cinema brasileiro não é para fracos e, dos filmes ruins, podemos extrair a poesia de um mundo. Além disso, o Mojica setentista, em retrospectiva, parece cada vez mais interessante. Apresentado ao público em janeiro de 79, Perversão recria o tema da revanche feminina, clássico da década e que, no Brasil, gerou amplo imaginário – ainda que fragmentado, disperso. Vivíamos de comunicações precárias e governados por… CONTINUA

Visões do inferno – a força política das imagens de Mojica

Assim como existe o marxismo vulgar (aquele que, sem nenhum esforço dialético, reduz a produção sensível às condições materiais e faz de toda arte um mero produto de sua época), há também o politicismo vulgar. Isto é, aquele que automatiza a relação entre uma representação e os efeitos políticos de uma obra de arte, como se ver algo retratado no cinema – uma imagem, um discurso, uma ideologia – fosse sinônimo de transformar-se neste algo que se vê, independentemente, inclusive, da forma como se vê.… CONTINUA

Antiestética da voracidade

I. (desdobramento) A construção de uma misantropia contraditória, mistura anômala de ingredientes que não se encontram em qualquer prateleira: no caldeirão fervendo, jogue uma caricatura do Übermensch nietzschiano, uma visão bizarra da Virtù maquiavélica; uma pitada de Conde Drácula, uma de Dr. Frankenstein, outra de delírio solipsista, acrescente a sociopatia típica da classe média brasileira — paranoia armada, misoginia, homofobia, racismo… À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), o terceiro longa lançado em cinema dirigido por José Mojica Marins – o “cineasta do excesso e do… CONTINUA

delém

Durante esta semana, a Cinética publicou um conjunto de quatro aproximações ao filme Retrato de uma Jovem em Chamas (Céline Sciamma, 2019). A obra mobilizou a redação e impulsionou as colaboradoras a se descobrirem em outras formas de exercício crítico. A poeta Júlia de Souza escreveu um ensaio em torno do filme, os redatores Luíz Soares Júnior e Júlia Noá colaboraram com textos e hoje encerramos a série com “delém” um ensaio em vídeo feito por Ingá e Mariana de Lima.  O coração na boca do mar, por Julia de Souza A percepção impossível,… CONTINUA