Processos de amadurecimento

Ao propor a um grupo de crianças de uma escola na periferia de Paris a oportunidade de realização coletiva de um filme, Eric Baudelaire coloca para elas um obstáculo tanto conceitual quanto prático: o que realmente é um filme? Ou ainda: o que significa fazer um filme? As crianças passam por conversas de todo tipo no percurso de sua busca por possíveis conclusões, desde discussões sobre política, geografia, racismo até debates acalorados sobre o significado da palavra “origem”. O que aparece como resposta espontânea ao… CONTINUA

Reinventar o cotidiano

A sequência de abertura de Oroslan nos introduz de imediato a um elemento que se mostrará central para a compreensão da vida no pequeno vilarejo do qual a narrativa se aproxima: a rotina. Acompanhamos a produção e a distribuição matinal de marmitas, que são cuidadosamente entregues a várias casas. Vemos que todas as casas têm cestas ou ganchos preparados para o recebimento, e entendemos que se trata de um ritual cotidiano de longa data, de uma expressão do tempo daquele espaço, daquelas vidas. A sequência… CONTINUA

Essa maneira estranhamente esperançosa

[carta de Felipe André Silva para Pedro Maia de Brito, um dos diretores do filme] Pedro, no meu sonho de ontem o ano era 2030. Tentava te mandar um recado do futuro pra te dizer que nada mudou, nada melhorou, e nós não ficamos necessariamente mais fortes, mas voltamos a sonhar. Te lembrava, ainda que você já saiba disso, que nos últimos vinte anos tínhamos desaprendido os caminhos que levam a esse terreno onde tudo é possível, tudo é da lei, e às vezes, é… CONTINUA

Fronteiras do esquecimento

Um pouco filme de terror, um pouco suspense investigativo, um pouco drama e um pouco documentário, Pajeú é uma junção entre a tentativa de dar continuidade ao recente diálogo de um certo cinema brasileiro com as convenções de gêneros americanos e o desejo de se apoiar em operações documentais como estratégia para um diagnóstico político ilustrativo, imediato. A sequência de abertura nos revela o encontro de Maristela (Fátima Muniz), protagonista, com uma espécie de assombração, que logo entendemos ser a figura do monstro, iconografia característica dos… CONTINUA

A lata de lixo da história

1. Em meio a lapsos de alegria, crescimento econômico e arroubos de revolução, os anos 2000 e 2010 viram acontecer uma espécie de “cinema festivo” que celebrava, geralmente a partir de corpos jovens, energias relegadas a segundo plano por muitos anos. Talvez por seu caráter individual, talvez pela sua ingenuidade. Fato é que, por exemplo no Brasil, aconteceu uma movimentação interessante, cujos traços podem ser rastreados em vários lugares: na Universidade Federal Fluminense, de onde curtas como Hiperselva (Helena Lessa, Jorge Polo, Lucas Andrade e… CONTINUA

Um cinema da culpa?

Felipe André: É notável como se instaurou uma espécie de “cinema da culpa” nos círculos da produção cinematográfica mundo afora durante os últimos dez, talvez cinco anos. Criadores que não necessariamente teriam interesse em determinados assuntos ou pautas encontraram na possibilidade de falar sobre ou “oferecer voz” a corpos dissidentes um bom combo de autopromoção e mea-culpa. Para Onde Voam as Feiticeiras é um exemplo cabal: duas realizadoras brancas e um realizador branco reúnem um grupo heterogêneo de artistas e militantes para criar um happening… CONTINUA

Olho para o passado, corpo para o futuro

No nosso último editorial, publicado em abril, encerramos o texto falando da instabilidade da primeira pessoa do plural, um movimento do “nós”. Neste mesmo período, tivemos uma mudança na composição da editoria, pois Raul Arthuso deixou a revista, depois de trabalhar como editor desde 2016, primeiro com Fábio Andrade e depois sozinho. Seguimos agora com Ingá, Victor Guimarães e Juliano Gomes como núcleo de proposições, na tentativa de manter o rigor de olhar e de escrita consolidados na última década, mas buscando ampliar o leque… CONTINUA

Imaginar o concreto

Não faz muitos anos que o crítico argentino Roger Koza definiu a Mostra Tiradentes como um “oásis de liberdade”. Talvez eu tenha pegado a conversa pela metade, mas não duvido que o mesmo Koza diria algo semelhante – em maior ou menor medida – sobre outros festivais brasileiros que também privilegiam obras formalmente arrojadas e não raro com conteúdos políticos explícitos. O que talvez pormenorize a opinião de Koza é o recente definhamento dos demais festivais que serviam de “oásis” aos realizadores brasileiros, especialmente os… CONTINUA

A natureza e outras epidemias: um olhar sobre A Peste em Florença

É provável que ninguém nos anos 1910 tenha demonstrado tanta obsessão por encontrar uma fórmula de sucesso para o cinema alemão quanto o produtor Eric Pommer. Mergulhando na tradição dos films d’art italianos e dos melodramas nórdicos que haviam elevado o status do cinema ao das altas artes, Pommer acabaria por descobrir na feérie dos contos góticos mais populares da época a ‘fagulha germânica’ que faltava para vender bem lá fora os seus filmes. O resultado acabado desta investigação – aquele que fez o cinema… CONTINUA

Por uma fantasmagoria negra experimental

No atual ambiente de ações remotas dos festivais no Brasil, algo tem se repetido: amigos e amigas me falando pra ver A Morte Branca do Feiticeiro Negro, curta de Rodrigo Ribeiro. No segundo ou terceiro evento onde ele estava programado, consegui. A impressão é de que estamos diante de um grande filme que não barateia um dos nossos temas mais fundamentais e difíceis de abordar: “o rastro escravista brasileiro”, segundo Ribeiro. Um incomum filme de arquivo, como uma flecha de perturbação lenta, com uma ensaística… CONTINUA