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11 estrofes sobre Nós

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“Nós” é, hoje, umas das palavras mais difíceis de se dizer. Ao passo que a cisão que funda o que se acostumou a chamar de “mundo” se torna mais e mais evidente, traçar uma “primeira pessoa” se torna uma ação cuja violência se torna quase insuportável. Nós quem? Nós como? O nó que repousa sobre essa idéia é o da consciência das radicais desigualdades que fundam coletividades (como a ideia de nação, por exemplo). O espaço aberto pela nitidez dessa fratura abriga uma torrente de ressentimento acumulado por séculos. O desafio é justamente como não ceder ao individualismo niilista neoliberal, entretanto não tentar calar o grito da fratura com expressões como “ninguém solta a mão de ninguém” e afins. O problema de esculpir hoje um “nós” é justamente combinar essa tarefa ao trabalho constante de reparação de todos os “ninguéns” – sobre os quais a idéia de “mundo” se apoiou. Esse processo age, simultaneamente, por inúmeras camadas, da alta geopolítica aos travesseiros de quem os tem. Nós é sobre isso.

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Jordan Peele é um poeta dos mundos paralelos. Os Estados Unidos (U.S. para os íntimos, como o nome original do filme), laboratório-matriz do capitalismo de mercado, é uma fábrica – pela produção constante de desigualdade – de realidades divergentes. A admirável engrenagem de Corra! (2017) era justamente um documentário sobre como essas duas camadas paralelas, dos alguéns e dos ninguéns, são intrinsecamente ligadas e quais são suas possíveis saídas. Para além da tela, Peele se mostra como um exímio jogador de outro sistema, análogo ao anterior: o de diretor negro, no centro na máquina de Hollywood. Com seus dois longas, Peele devolve à indústria americana o privilégio de um pensamento estético-político de ponta. Como grande nerd que é, Jordan Peele mostra que de fato estudou amplamente as referências que coloca nos filmes, não só no nível da urdidura, mas como manejo da máquina em relação a sua autonomia criativa. Hitchcock, Spielberg, Kubrick são alguns desses marcos onde, em alguns momentos, historicamente se pode combinar experimentação radical e cheque em branco dos executivos. No contexto atual, onde vários dos maiores inventores do cinema estadunidense simplesmente não conseguem viabilizar seus projetos, a proeza de Peele é notável. Ao que parece, o diretor conseguiu fazer com que a abertura da visibilidade da fratura que assinalei acima se torne rentável, falando assim a língua dos “alguéns”. A “ninguenzação” histórica, o cultivo da lacuna, uma vez revelada, é também uma “oportunidade de negócios”, um campo de exploração. Daí sua ambigüidade inerente.

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Em Nós continua-se a explorar a idéia do corpo como zona de materialização das cisões. Entretanto, com o sucesso do relativamente barato filme anterior, o artista rumou em direção a uma empreitada bastante mais radical, buscando combinar sua rara habilidade de urdimento ficcional com um investimento violentamente conceitual. Estruturando o filme em diversas pequenas partes – eventualmente aberrantes entre si – o roteiro nos alimenta de pequenos paybacks para poder, em seguida, nos atirar numa situação de tons bem distintos. O principal motor desse jogo é isso que se consolida com uma espécie de “Peele touch”: a variação constante entre soluções cômicas e trágicas, e a construção de uma certa reversibilidade entre ambas. Um filme “de pontas soltas” na Hollywood atual, no U.S. atual, e pro público “fiscal do gênero”, e que mesmo assim dá dinheiro, me parece um feito considerável. Para conseguir construir um longa que afinal é um corpo aberrante, a voz do filme se faz a partir de uma consciência e manipulação muito fina dos desejos do espectador. As eventuais soluções inverossímeis – não são poucas – são contrabalanceadas por fino manejo das situações de tensão e pelo uso do recurso de identificação ao colocar na boca do personagem algo que pensamos diante da instabilidade do acordo de crença. Um exemplo se dá quando Adelaide (Lupita Nyong’o) sai sozinha para enfrentar a família dos seus duplos, Gabe (Winston Duke) diz: “Lá vai ela!”. É justamente na fronteira entre identificação e estranhamento o terreno preferido de trabalho do diretor americano, pelo menos desde Key and Peele (2012).

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Se os flashes do protagonista fotógrafo de Corra apontavam para Janela Indiscreta (1954) – dois filmes deliciosamente decifráveis – Nós é filme-irmão de Os Pássaros (1963). Horror litorâneo diurno, e principalmente: inexplicável, aberto e aberrante. Peele, também um exímio plantador de signos escondidos, padrões gráficos, revive a fase mais experimental de outro cosmólogo obsessivo que é Alfred Hitchcock. Depois do documentário Corra, temos aqui um eficientíssimo filme-ensaio sobre a impossibilidade do espelhamento e da desvinculação das partes. Ele se constrói a partir de uma profusão de signos que se reconfiguram constantemente, mas o espaço entre as linhas divergentes (11:11) é sempre aberto. O sucesso do filme em criar intensos ambientes de variação de experiência fez com que a moeda da “explicação final” não pesasse para o público em geral, dado seu sucesso comercial no curto prazo.

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Um dos signos mais presentes na narrativa é a idéia de musicalidade e ritmia. Não só as canções no filme são material dramático essencial, mas há um conjunto crucial de cenas onde o ritmo, a dança são um valor. Conversando com Fábio Andrade sobre o filme, ele me falava sobre essa insistência de uma certa ideia de timing em vários momentos no filme. Numa das primeiras, quando a família está toda no carro, toca a faixa “I Got Five On It” (Luniz, 1995), Jason (Evan Alex) pergunta o que a letra significa, sua irmã Zora (Shahadi Wright Joseph) diz que é “sobre drogas”, Adelaide intervém, marcando o ritmo, no contratempo, com o estalar de dedos, convidando Jason, e ele aceita: melhor sentir (feel it) do que entender. Isso é Nós.

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Red, o duplo de Adelaide, que desce ao mundo dos “amarrados” (tethered), constrói seu poder no subterrâneo justamente pela dança. Jason usa o poder do ritmo para matar seu duplo (Pluto) também por certo encantamento do estalar dedos.

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O signo que dispara a situação inicial da troca entre Red e Adelaide é justamente a camisa preta de Thriller, de Michael Jackson. Não seria descabido dizer que se trata da maior obra do horror negro de todos os tempos, na medida do seu alcance no imaginário coletivo. No filme de Michael e John Landis, de 1984, o problema fundamental era o do afeto negro e de um certo potencial de desagregação que age sobre a vida das pessoas pretas. O problema ali era um jovem negro “ser diferente”. E na metassituação proposta pelo filme de Jackson/Landis o que se sonhava ali era a existência de um filme de horror negro, como possibilidade de expurgo de um cotidiano que nunca chegou perto de verossímil. A história negra é do gênero horror há cinco séculos. A canção diz: “e você se dá conta de que não há pra onde correr / você sente a mão fria / e pensa se algum dia poderá ver o sol / você fecha os olhos / e espera que isso seja só imaginação”. Os signos de Nós estão aí. Peele e Jackson são grandes poetas experimentadores na ponta do capitalismo do seu tempo, encenando a dança dos ninguéns aberrantes e apontando a reversibilidade dessa condição. O personagem de Jackson no filme Thriller é o jovem e o monstro, ao mesmo tempo. O centro de Nós é justamente a passagem que as personagens de Nyong’o operam, é esse trânsito que dispara o movimento do sistema. Não é claro se esse deslocamento aponta exatamente para “melhor” (o sistema em questão não é moral, a própria divisão entre vilões e heróis é altamente borrada), entretanto, parece que o movimento é necessário – e fundamentalmente problemático e incerto. Por exemplo, como prosseguir, agora que os Amarrados fizeram a corrente humana, e que o Jason sabe que ela é um deles? O futuro que sucede a movimentação das posições, o exercício da reversibilidade, é necessário porém não exatamente otimista.

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A composição dos Amarrados – que na legenda brasileira está como “acorrentados”, signo literal da escravidão – opera uma série de ligações. Os macacões são análogos aos da população carcerária americana, e dependendo do setor, se assemelham a de um operário de fábrica, a um uniforme proletário geral. Esses “outros” que não sabem falar bem, que não tem direito ao sol, a boa comida e que são iguais a “nós” constituem essa classe dos “ninguéns” que se organizam e tomam a superfície. E para essa articulação é necessário essa figura que transite. De certa maneira, o mote conceitual do filme é a ideia mesma de movimento, e não um movimento qualquer, mas monstruoso. Não por acaso, Jason tem vários signos que o marcam como um desses habitantes do limiar, dessa reversibilidade. Nunca abandona a máscara da besta, seu rosto são dois. No filme não há uma face verdadeira que prevaleça, assim como no outro menino de máscara, em La Noire de…, de Ousmane Sembéne (1966): a conta da identidade negra não fecha.

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Quando Adelaide mata Red, ela se bestializa entre o grunhido e a gargalhada, desrecalcando seu passado de “outra”. A resposta a essa grande alegoria que aponta para a desigualdade sistêmica que funda o mundo como conhecemos parece ser a experiência do trânsito – não tão distante, portanto, do transe. Exercício experimental da troca: Peele entrou numa posição que nunca foi de um negro. Provavelmente nunca uma família branca foi morta com tanto gozo cênico quanto os Tyler ao som da expressiva montagem entre Beach Boys e NWA. É justamente o corte entre “Good Vibrations” e “Fuck the Police” o exemplo do tipo de movimentação que o filme opera. A câmara de espelhos que dispara o filme tinha na fachada, em 1986, um indígena. Hoje virou Mago Merlin. Não se trata exatamente de “superar” os Beach Boys, mas ritualizar o gozo com as “good vibes” que é ver os brancos ricos morrendo cruelmente, e, ao passo que o mecanismo de reconhecimento de voz “entende errado”, e celebrar a passagem de quem tomará o poder ali, clandestinamente. Como mixar essas faixas senão pelo corte?

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É necessário que a máquina de reconhecimento dê defeito. A imagem da negrura, da “blackness”, ela operará sempre por invenção, por incerteza, pelo “it” do “feel it”. A desagregação negra, que o filme coloca como elemento central da fábula política, tem como materialização a ideia de uma existência ausente, de um passado lacunar (onde o desejo de esquecer é um elemento de tensão importante): a tal “ninguenzação”. Assim, ela irá se fazer quando as máquinas do capitalismo dão defeito. Peele está surfando num defeito da máquina do alto capitalismo imagético cognitivo, numa situação onde uma coisa parece outra, onde não se entende bem se é horror ou comédia, se é ficção científica ou drama, se é entretenimento ou uma fábula iconoclasta, se representatividade significa repetição ou diferença… É a constituição de um espaço incerto, transitório, de fuga afinal, de que se trata Nós. O filme performa através de suas camadas essa espécie de estranha condição.

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Num texto curto sobre o filme, Bernardo Oliveira vai falar que “Peele resolve esgarçar a dualidão até provocar o efeito de rasgo e decomposição. Nada se soluciona: como a vida, tudo se prolonga, persevera, continua indefinidamente, modulando as mais estranhas possibilidades… O filme termina com essa linha de entreduplos, de zumbis que avançam e recortam um horizonte indeterminado.” Essa é a pedagogia que o diretor opera quando um cheque em branco muito maior que o de Corra! cai na sua mesa: experimentação, delírio e aguda imaginação política. Não por acaso, o espaço de embate entre as personagens de Lupita é uma sala de aula. O modelo do filme é o de uma pedagogia da não repetição, do não espelhamento idêntico, do expurgo do Mesmo. Num rap nunca há repetição do beat, porque o compasso é sempre outro. Nós é uma questão de “flow”, é batalha de rimas. É guerra.


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