in loco - cobertura dos festivais

De Volta à Normandia (Retour en Normandie),
de Nicolas Philibert
(França, 2007)
por Eduardo Valente

Documentar o tempo e o mundo - só isso

Não é nada fácil responder à aparentemente simples pergunta “o que documenta este De Volta à Normandia”? Isso porque, por mais que no começo Nicolas Philibert tente definir seu objeto de maneira direta (voltar ao lugar, no campo, onde trabalhou como assistente de direção num filme de ficção feito 30 anos atrás para reencontrar os não-atores que participaram do elenco local deste filme), o que o filme parece realmente documentar é a natureza fugidia do trabalho de um documentarista – pelo menos daqueles que se permitem trabalhar sempre com os olhos e ouvidos bem abertos. Sim, porque o que revela o verdadeiro olhar de documentarista de Philibert é sua capacidade de transformar aquilo que, no fundo, poderia ser tão somente uma missão jornalística bem simplória (registrar de que maneira uma experiência direta com o cinema havia mexido com a vida de um grupo de camponeses) em algo bem mais profundo e insidioso.

A começar por inverter as estações e mostrar, duplamente (sobre ele mesmo agora e, retrospectivamente, sobre René Allio em 1975), que mais importante talvez seja tentar ver de que maneira a vida camponesa mexeu com o cinema dos diretores que lá foram procurar seus filmes. Ou seja: não basta ser simplificador, e pensar que se possui uma verdade sobre duas realidades (cinema e vida camponesa), apenas para se confirmar como elas se relacionam, ou não. É caso mesmo de ir a campo de coração aberto, pronto para redefinir tudo que se pensava saber sobre o cinema e a vida no campo. Philibert claramente se interessa menos por saber “o que documentar” do que por se deixar perder pelos caminhos que vão surgindo. E é assim que consegue fazer um filme que, ao mesmo tempo, nos faz pensar nas relações entre ser alguém ou interpretar alguém, e a sempre tênue fronteira entre encenar e documentar.

Claro que ajuda muito a constante complexificação da narrativa do filme o fato do material original que deu origem ao filme de 1976 ser, ele também, cheio de nuaces. Afinal, tratava-se da adaptação do livro-dossiê organizado por Foucault a partir de um caso de triplo assassinato cometido no interior da França (na região da Normandia, como diz o nome do filme), em que um jovem assassinou a mãe, uma irmã e um irmão – e depois, ao ser preso, escreveu um alentado diário revelando seus motivos, métodos e lógica. Um tema, portanto, em si bastante rico em mistério e impossibilidades de completude de compreensão. Com as entrevistas, Philibert vai descobrindo como se deu a junção dos imaginários daquele ambiente dentro do seu momento histórico nos anos 70 com o tal passado mítico que se queria filmar.

Philibert começa a ouvir os camponeses que vai conseguindo reencontrar, mas logo os causos memorialistas vão se tornando bem outra coisa: por um lado, Philibert se deixa tomar por alguns de seus personagens (principalmente um fazendeiro de porcos) e vai documentando o presente destes com considerável detalhismo e poesia; por um outro, começa a fazer uma pesquisa sobre o processo de realização do próprio filme nos anos 70 (tanto em aspectos práticos como, principalmente, com ajuda de anotações do diretor Allio). Acima de tudo, filma (e monta, principalmente) suas conversas com os personagens com uma enorme paciência de olhar, que deixa que, na duração de seus discursos, cada um vá revelando um pouco de si – nada de cortes abruptos para os “momentos de ouro” dos depoimentos: acompanhamos o processo de uma entrevista como um todo.

A nossa compreensão do significado da experiência vai crescendo de uma tal maneira que, já quase ao final, quando Philbert consegue encontrar o desaparecido protagonista do filme de 1976 e o leva para a Normandia para reencontrar seus colegas de elenco nos locais onde filmaram, a emoção é forte. Tão forte quanto a cena que fecha o filme (onde Philibert revela motivos bem mais pessoais para sua realização), ou quanto aquela que o abre, com a singela documentação de uma luta pela vida. São apenas algumas das várias imagens de De Volta à Normandia que dificilmente saem de nossas cabeças.

Setembro de 2007


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