in loco - cobertura dos festivais

No Meio do Rio, Entre as Árvores,
de Jorge Bodansky (Brasil, 2009)

por Rodrigo de Oliveira

“Cinema é uma televisão, só que grande”

Eis aqui o cineasta de pelo menos dois grandes filmes, Iracema e Terceiro Milênio, voltando ao ambiente amazônico de onde os sacou no passado, e se há algo a se conceder a Jorge Bodansky (alguns diriam “a se desculpar”) é a absoluta falta de ambição com que este No Meio do Rio, Entre as Árvores se apresenta, um produto pálido diante do que sabemos ser capaz de produzir, mas pálido “com motivos”. Trata-se de uma espécie de institucional em longa-metragem do trabalho que o próprio Bodansky iniciou há alguns anos na TV Navegar, um projeto de iniciação videográfica a populações ribeirinhas da Amazônia com foco em questões socioambientais, cuja plataforma principal é a divulgação dos filmetes realizados via Internet. De acordo com o site oficial, um projeto que “tem como característica dar voz à população local”, onde este No Meio do Rio seria, por conseqüência, o devolver-a-voz a quem dá-a-voz – ou, em seus piores momentos, um parasitar-a-voz-que-dei-ao-outro.

Nada em No Meio do Rio soa menos que protocolar: estão lá as belas imagens da paisagem tomadas como se a longa experiência do cineasta naquele espaço ainda não o tivesse retirado da condição de turista acidental, os depoimentos curiosos da população local, o entrecho político obrigatório (as pautas apenas evoluíram: fala-se agora em economia sustentável, coisa ainda muito distante do horizonte dos madeireiros retratados em Iracema, por exemplo), um senso de “história secreta do espírito brasileiro” sendo revelado a cada novo personagem – não fossem, essas mesmas histórias, a repetição ao infinito de tudo o que já foi visto sobre a região, sobrando pouco de surpresa e muito de tautologia. Mas tudo isso é acessório uma vez que o filme finalmente se aproxime da dinâmica a que quer se dedicar, esta dos oficineiros, estrangeiros àquela situação, e suas máquinas maravilhosas a ensinar os ribeirinhas como olhar para seu entorno mediados pela tecnologia.

Os letreiros que surgem eventualmente demarcando nomes de cidades e depoentes, num layout próximo ao dos programas ecológicos da televisão, prevêem a lição dada por um instrutor paulistano que serve para título deste texto: o que se fará ali são exercícios de filmagem que dependem apenas do repertório adquirido pelos moradores com as décadas de alfabetização televisiva. A diferença entre tevê e cinema é exclusivamente uma questão de escala: “é igual, só que grande”. Uma diferença colocada diretamente pelo filme em sua montagem: as imagens precárias produzidas pelos moradores, escuras e trêmulas, geradas por câmeras de mão amadoras, ocupam apenas um quadrado televisivo no centro da tela de cinema, com tarjas laterais; enquanto as imagens do filme, em opulenta definição digital, se estendem pela tela inteira, são límpidas e estáveis, bonitas mesmo, “de cinema”. Um dos moradores, fazendo um exercício com câmera fotográfica, diz que esta arte “nada mais é que aquilo que tu tá sentindo no momento”.

No Meio do Rio... parece sentir, no momento em que hierarquiza as imagens desta maneira, que dar a voz é uma coisa, mas dar novos olhos é outra completamente diferente – por mais que tentem, os ribeirinhas nunca poderão almejar a grandeza física real do cinema. Mas, ao mesmo tempo, o filme só se aproxima de um mínimo de consciência cinematográfica quando parasita as tentativas dos moradores de burlar a apatia ensinada pelos oficineiros (é curioso o plano em que um instrutor anuncia a novidade num barracão, e uma panorâmica mostra rigorosamente todos os moradores convocados para a aula de vídeo com uma cara de tédio profundo). Não duvidamos que o espírito de Jorge Bodansky esteja no lugar certo, e que falta de ambição não significa falta de caráter, mas é a própria composição e montagem dos planos que sugere essa postura parasitária. Plano-padrão de No Meio do Rio...: um morador com câmera de mão a aponta para outro morador e dele toma algum depoimento ou simplesmente filma uma ação, enquanto o filme registra a cena dois passos atrás, utilizando o som desta troca interna como seu próprio.

Inevitavelmente, esta imagem tosca de handycam é a “imagem séria”, é onde surgem temas, histórias, personagens. O filme, em todo seu controle, definição e beleza, é a “imagem brincalhona”, a que não resiste ao menor exotismo, a uma criança de sorriso largo, a um animal raro cruzando a paisagem. É a handycam que agencia os planos, sobrando ao filme apenas reutilizar sua alma. E aí, entre todas as questões de propriedade e pertinência, de postura diante do outro e método de abordagem, No Meio do Rio... nos joga a mais infrutífera das discussões, mas que ressurge aqui como se Bodansky ignorasse os cinqüenta anos de documentário brasileiro do qual, ele mesmo, é um dos maiores construtores: de quem é o olho do filme? Quem observa e quais suas razões para observar tudo desta maneira? E se este olhar não se sustenta como tal, com suas razões e idiossincrasias, há realmente filme?

Na celebração final, onde acontece a obrigatória exibição dos materiais filmados à população que os filmou, o próprio Bodansky aparece em cena fotografando uma apresentação de circo promovida pelas crianças do lugar, olhos brilhando e sorriso de quem testemunha algo inédito – mesmo que imaginemos ser aquela uma situação habitual para ele ao longo dos anos de TV Navegar. Enquanto making of de um processo, No Meio do Rio é tímido e deficitário. Enquanto projeto de educação audiovisual, o trabalho de Bodansky parece ainda estar muito distante da articulação e excelência do similar Vídeo nas Aldeias. O filme só parece funcionar mesmo enquanto “vídeo de formatura” de uma turma de trabalhadores-estudantes que se graduam no meio da mata sob o olhar encantado deste pai e mestre. Mas para a festa nós, os espectadores deste longa-metragem que se estrutura e se exibe (num festival) como tal, parecemos não ter sido convidados.

Setembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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