Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil
(Brasil, 2010)
por Paulo Santos Lima

Nas fundações do cinema documental

Parece improvável, senão absurdo, que o incidente no qual Sérgio Ricardo arremessou seu violão arrebentado à platéia do Teatro Paramount, na final do 3o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, ainda gere as mesmas opiniões que brotaram em 1967, ano do acontecido. Isso está, em princípio, patente em Uma Noite em 67, que não traz efetivamente um olhar novo sobre o gesto do músico, talvez até reiterando os julgamentos acertados há anos (discutíveis, pois Sérgio Ricardo respondeu à altura, feroz e reativo, ao destrato dos espectadores). Por outro lado, este filme que trata da antológica noite de 21 de outubro de 1967, em sua própria captura e exposição de um material rico e visto até então apenas aos fragmentos, traz uma certa revelação.

Revelação, e não posição. Posição, que no cinema é manipular o material e criar um discurso a partir dele ou sobre ele, algo concreto numa fita como Pan-Cinema Permanente e só maquiado (pelo formalismo “esperto”) em Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei. Uma Noite em 67, exercendo um papel demonstrativo, é, aparentemente, “estóico”: estruturalmente, um jogral entre cenas de arquivo e depoimentos trazendo bastidores e o ato em cena do festival, valiosíssimo na sequencialização de situações a ver com Caetano e Gil indo ao encontro da guitarra elétrica do Tropicalismo, Chico de smoking e MPB4 cantando a “Roda Viva”, Edu Lobo vencendo com seu “Ponteio”, o Rei fazendo piada, etc. Somente isso? Modesto? Talvez, como ponto de partida. Mas a modéstia, no cinema, faz bonito por vezes, sobretudo no documentário, e, sem os fricotes de uma montagem malandra, intervenções na imagem e tal, há um discurso que simplesmente “é”. As coisas e assuntos são.

Se existe, evidentemente, um sentido que norteia os propósitos dos cineastas, ele é invisível diante da estrutura ortodoxa. Voltemos ao lá em cima citado Sérgio Ricardo. O filme traz imagens e personagens dentro dessas imagens, todos daquele momento, que experimentaram, in loco, e se chocaram com a atitude vigorosa do músico. Espantoso que os depoimentos atuais costurados a essas imagens são reiterantes, quase transposições quartodecênias. Mas aí, pela voz de um Sérgio Ricardo anos 2000, temos a superação daquela situação valiosa em seu momento histórico, e ecoada como mantra nos almanaques memorialistas da história do Brasil do século 20, ouvimo-no explicar “agi como um gato acossado”. Apresentar “modestamente” o máximo de imagens deste incidente, como jamais visto tão integralmente, e finalizar com tal frase de efeito, parece justificar Uma Noite em 67 como um reencontro ao estado primário do documentário de inventário de imagens e coleta de vozes.

Esse discurso que essencialmente “é”, na verdade, é um discurso que resulta em sentido. O sentido do trabalho de Terra e Calil (que está mais próximo do melhor que o jornalismo pode fazer hoje, que é a caça de materiais relevantes, e daquele cinema documental pioneiro que se arvorava de descobridor do desconhecido do mundo) implica em levar imagens do Festival da Canção da janela 1:37 da TV para o formato 1:85 do cinema. Perde-se cabeça e pé com o formato, mas ganha-se a posse de um espaço outro, o da sala escura – este que, muitas vezes, ttorna-se arena de sacralização da memória. Se a bala saída do cano da arma perde a dureza metal até o alvo, isso não é um problema do atirador, ou seja, do filme.

A partir do que os realizadores explicam sobre seu longa, como se a célebre noite fosse parte de um todo maior chamado momento político brasileiro, parece que Uma Noite em 67 é, apenas, um discurso que reúne registros e reflexões acerca do que essas imagens carregam. “Apenas”, melhor apontando. Porque é desse comedimento, que parece primo da isenção, que a simples (direta, estrita, essencial) execução documental desse que é dos grandes instantes da cultura nacional ganha valor. Valor pela inexistência de precedentes, pelo não feito antes. Valor, também, pela franqueza com a qual os diretores optam pelo freio, pelo respeito a um material que estava meio largado em algum canto por aí. Parece inescapável que Uma Noite em 67 passe longe da modernidade de Eduardo Coutinho e Carlos Nader, ou da ficcionalização questionável de José Padilha, para se aproximar de um estado primordial em que o olho encontra o jamais visto, ainda sem julgar, talvez a se encantar.

Abril de 2010

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