Noel - O Poeta da Vila, de Ricardo Van Steen (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

Grandeza na modéstia

É razoavelmente comum em cinebiografias vermos o esforço por, juntando pedaços de diferentes momentos da vida de alguma figura célebre, encontrar um sentido dramático para o percurso desta vida. Já começa ai o diferencial da proposta de Noel Rosa – O Poeta da Vila, estréia em longa de Ricardo Van Steen: se obedece a dinâmica do “the best scenes of life”, mantém os fragmentos no campo dos fragmentos. Cada pedaço da trajetória de Noel Rosa é, antes de ser uma parte necessária para se entender o conjunto de sua existência, um pedaço com existência própria, não porque tenha sentido autônoma, mas porque tem uma riqueza em si mesmo: a riqueza da experiência.

Van Steen opta por se ater em um período condensado. Parte da transição dos estudos de medicina para o mergulho no mundo do samba e termina com a morte precoce do compositor por tuberculose, aos 26 anos. Essa opção pela abordagem de poucos anos de Noel, se não chega a instalar o filme em momentos de observação mais detida, ajuda o diretor a captar uma atmosfera de ambiente e época. O samba carioca dos anos 20/30, certamente, está impregnado em várias passagens. E é esse o ponto mais alto de O Poeta da Vila.

Mesmo tendo a seu favor um ator possuído em seu mimetismo minucioso, que se agiganta em alguns momentos com sua voz frágil e sua estatura miúda, o filme é especialmente feliz na aproximação com o entorno – não tanta pela reconstituição cenográfica e dos figurinos, mas, sobretudo, por conta da crença da direção e dos atores em estar lá, no Rio dos anos 20/30, com um jeito de postar-se em cena e de comandar as palavras todo próprio. Pode-se afirmar, sem risco de superlativismos, que há autenticidade, por assim dizer, nessa recuperação de época. Van Steen evita o cheiro de naftalina emanado de algumas iniciativas do gênero, investindo em uma câmera quase sempre fluente e suave, em um fluxo dinâmico na passagem entre os planos, em elipses nada didáticas e em uma imperfeição do enquadramento que, além de ofertar um saudável contraste com os planos mais compostos e “artísticos”, evita uma mumificação da imagem do passado. O Rio de ontem, nesse sentido, respira contemporaneidade.

Não significa que, entre o primeiro e o último plano, tudo é ginga. Se há situações especialmente bem sucedidas, como o início da transa entre Noel e sua esposa, com o vidro de uma porta entre eles e a câmera, também existem circunstâncias desastradas, como uma outra transa, agora do compositor com sua amante Ceci (Camila Pitanga), um e outro com máscaras para não se contaminarem com a tuberculose. A cena, menos pelo que mostra em quadro, mais pelo quadro em si, quebra o registro, mas sem apresentar um outro registro à altura do padrão estipulado por Van Steen. De qualquer forma, esse é um momento quase de exceção, que, se comparado ao restante do material, realmente parece parte de outro trabalho. Se não chega a ser memorável ou impactante, se não ambiciona a poesia experimental de um Sganzerla (Isto é Noel Rosa), se não incorpora mais a criação musical que o criador dos sambas em sua frente de abordagem, O Poeta da Vila, ao menos, tem a grandeza de ambicionar ser modesto e digno em seu enfoque e encenação. Ponto positivo!

Outubro de 2006


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