Onde
os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men), de Joel e Ethan Coen (EUA,
2007) por Cléber Eduardo
Desconcertado
sim, desconcertante não
Podemos criticar a natureza
“filme-tese” de Onde os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Joel e Ethan Coen,
se essa natureza é a própria motivação do filme? Talvez as questões sejam outras.
Que tese se defende? Com quais estratégias? A tese dos Coen é ambígua, se não
por intenção, certamente como efeito.
Antes de vermos a primeira imagem,
ouvimos a voz de Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), xerife cuja importância será secundária
na narrativa, mas que, por meio desse único momento de narração em off,
declara-se a voz interior do filme. Ele não tem outra função dramática além do
papel de consciência estupefata do mundo – aparentemente a mesma posição da instância
autoral. Em sua narração, o xerife afirma, não sem saudade dos velhos tempos,
que, em sua juventude, a violência era mais civilizada. Era possível ser homem
da lei sem empunhar armas. A própria lei impunha respeito. Como saberemos adiante,
estamos nos anos 80 e, nesse momento da humanidade e dos EUA, o xerife está desorientado:
a lei não vale nada, está impotente diante do horror da brutalidade. O
restante do filme, após essa introdução pela narração, mostra tanto a comprovação
“literal e simbólica” dessa brutalidade desorientadora quanto o contrário da tese
esboçada nas palavras do xerife. Se o narrador acredita ter testemunhado uma degradação
da violência, sem entender a razão social desse fenômeno e sem aceitar a hipótese
de doenças individuais como causa, relatos ouvidos no filme mostram uma outra
coisa, uma violência de gênese antiga, a insinuar um mal genético na formação
do americano. Assim percebemos que a voz do narrador lá no começo não é a voz
do filme ou da verdade. É voz da regulação legal, de uma consciência individual
e de Estado, uma voz oficial em sua subjetividade, consciente de sua falência.
Era mais fácil regular a sociedade. A sociedade, porém, se desregulou. Só restar
aceitar o mundo como é. Ancestral
ou contemporânea, a violência, tal qual mostrada em Onde os Fracos Não tem
Vez, carrega na insanidade. É quase a bad trip de um delírio, quase
parte de uma mitologia, efeito de uma droga ou encenação de algum mefistófeles.
Porque o teor de levantamento de sintomas contido na narrativa, sem com isso se
fazer diagnóstico da doença, é condensado de forma caricata em uma imagem-mito
do mal, a de Anton Chicurgh (Javier Bardem), que encarna a doença social e/ou
genética em cada gesto, como monstro de terror B e vilão de ficção científica.
Tudo nele é exagerado, absurdo e inverossímil, porque, para os Coen, a violência
real é fantástica, não realista, e para representá-la é preciso exagerar em tudo.
Tem cabimento essa proposição, enquanto conceito, mas, na prática, ao mitologizar
o monstro pela caricatura, atenua-se o efeito dramático. Anton passa a carregar
em sua imagem um tanto de desenho animado. O filme procura
demonstrar esse caráter mítico e delirante da violência de forma quase ilustrativa,
menos pelo didatismo das contextualizações histórico-sociais e mais pela metaforização
auto-explicativa, com a qual cada imagem também é outra de significado mais amplo.
Após um cara e coroa para decidir a vida de sua última vítima, por exemplo, Anton
sofre um acidente de trânsito para evidenciar a força do acaso. No entanto, assim
como afirma e desmente sua afirmação ao tratar da violência, o filme também é
ambíguo nesse didatismo, que traz a questão do acaso para a dança, nos induz a
uma ausência completa de explicação, deixando tudo na mão dos acidentes (a suspensão
da lógica), mas também insinua não acreditar nisso inteiramente, se levarmos em
conta o tom de frase-verdade da última vítima de Anton ao recusar o cara e coroa
porque se agarra a idéia de que viver e matar é uma questão de escolha. Nesse
sentido, Anton, por extensão, longe de ser o acaso de uma DNA estragado, é escolha
de uma sociedade, de maneira ampla, e de si mesmo, se o tomarmos como indivíduo
para além de sua carga simbólica. Os Coen parecem empenhados
em ilustrar as idéias no roteiro e as idéias de roteiro, fingindo defender uma
tese que na verdade já carrega sua relativização, assim como fingindo seguir uma
convenção para depois despistá-la, como a imagem de um personagem morto sem a
imagem de sua morte, invertendo qualquer expectativa de nossa parte, com o intuito
principal de desviar-se do previsível. Há algo a se dizer, mas, por não haver
certeza sobre nenhuma afirmação, tenta-se dizer sem afirmar. No
entanto, esse dizer sem afirmação, em mais de um sentido, grita demais. Um dos
raros momentos no qual o cinema de cineasta se sobressai ao cinema de roteirista
também não vai mais longe porque existe uma narração explicativa na imagem. Trata-se
dos primeiros planos, todos abertos, de uma típica paisagem texana, desértica,
mitológica, que carrega sinais de cultura e de História, tranqüilidade e melancolia,
a nos remeter aos velhos tempos. Ao mesmo tempo, a voz do xerife, vejam só, fala
dos velhos tempos. Temos tanto um lado tatibitati na condução, conforme descrito
acima, quanto um lado desconfiado do tatibitati, sem conseguir omiti-lo. Porque
se as imagens da paisagem desértica texana contêm em si mesmas uma notável força
expressiva, inclusive por ter sido mitologizada pelo cinema, a ocupação do espaço
por corpos masculinos caídos e um cão ferido perde sua energia comunicativa, tendo
em vista sua antecipação pela narração do xerife. Quando
ele fala do novo padrão de violência, enquanto vemos as belas imagens do campo
aberto, já podemos prever algum sinal de deterioração a marcá-la, lembrando-nos
de forma mais ou menos óbvia do sangue contido naquele ambiente, não somente por
ser universo de western, mas também por conta do percurso histórico de
formação dos EUA. Nessa dinâmica de jeitão tatibitati de ilustrar sua visão da
violência, somado à dúvida sobre essa visão, os Coen nos propiciam um cinema com
olhar desconcertado por seu momento histórico, mas não desconcertante como experiência
estética. Janeiro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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