emulando Voltando
para o mundo por Luiz Soares Júnior
News
from Home, de Chantal Akerman (França/Bélgica/Alemanha, 1976)
Como
o plano médio de uma rua vazia de Nova York, onde uma jovem Chantal Akerman foi
passar férias aos 18 anos, pode se deixar impregnar pelos efeitos das cartas de
sua mãe, lidas num tom monocórdio pela diretora ao longo do filme? Como o ritmo
do metrô da grande cidade, as fachadas das casas, de que maneira a azáfama anônima
e disléxica da multidão estabelecem um ponto de contato (ou oclusão) com a dimensão
afetiva da palavra? News From Home se constrói como uma elaboração metódica
e precisa dos efeitos da palavra sobre os objetos, de como eles reverberam, condensam-se,
se rarefazem por meio desta operação reversível ao infinito onde os signos esposam
as coisas. A operação é mais simples do que parece: o discurso
da mãe é lido num tom e num diapasão que lembra mais a descrição dos afazeres
de um burocrata do que um inventário amoroso de queixumes, saudades e solicitações.
Parece mais uma pedra engastada no território da cidade, um objeto que demarca
e equaciona as transições elaboradas ao longo do filme. A
narração é uma estrutura-mor que nos permite decodificar a cidade numa dimensão
a princípio estranha a ela: Chantal Akerman transforma a cidade numa espécie de
ready-made, para onde converge e se fixa a narração afetiva. A palavra
das cartas é o grande objeto, a plataforma de sentido contra a qual repercutem
os movimentos deste “objeto parcial”, renitente e inassimilável que é a Cidade.
Perversão do sentido, da finalidade original do objeto (Nova York) pela mediação
do tempo e do texto. Nova York, cidade-monumento por onde circulam imperativos
de trabalho e lazer, transforma-se num grande mapa transitivo onde a intimidade
e o mundo tecem alianças diversas. A
grande cidade é filmada sob o signo de uma dupla objetificação: a distância dos
planos, a alternância entre planos de multidão e planos de lugares ermos, o enquadramento
restrito e artificial a que Chantal submete várias “vistas” (como por exemplo
a visão da cozinha de um restaurante ou do terminal de passageiros do metrô),
estabelecem, em um mesmo movimento, Nova York como documento fixado, irredutível
à representação subjetiva e como um grande reservatório expressionista de ficções
em potencial, palco surrealista de conversão e rarefação das coisas em símbolos.
A alienação proporcionada pelo documento não basta; a cidade é visada de forma
duplamente distanciada, literal e subjetivamente, ambas as representações estabelecendo
entre si uma relação intercambiável. Não há propriamente
“diferença” entre a palavra da mãe e as coisas filmadas, choque dialético, mas
um jogo de acomodação, engaste, equilíbrio progressivamente estabelecido ao longo
do filme. Os travellings sobre a cidade são uma das estratégias usadas
para essa operação de assimilação recíproca do sujeito e do mundo, de tomada
de posse de novas referências visuais e temporais que configuram a Cidade. Nova
York para olhos noviços é antes de tudo uma experiência cartográfica. No plano
fixo, a cidade mantém o primado sobre a experiência da narradora; nos travellings,
essa posição se altera. O filme inteiro se mantém no equilíbrio destas táticas
de deslocamento e fixação, de aproximação e distância, presença e ausência. O
fora-de campo é fundamental nessa dialética de extremos, onde o tempo é o elemento
mediador por excelência; somos restringidos à plataforma do metrô, somos absorvidos
por ela, mas ao mesmo tempo somos obrigados a situá-la no seio da Cidade como
um organismo mais vasto e ressoante que reconfigura toda restrição de cadre, toda
parcela de tempo numa espécie de jogo, onde a palavra, a coisa e a vivência são
embaralhadas, aliciadas para um centro invisível e subjacente a toda e qualquer
representação visível. O trabalho com o som – e não apenas
com o som das cartas lidas – é importante nesse sentido: somos sempre atraídos
e rejeitados por uma presença – a cidade de Nova York – fantasmagórica, detentora
de traços de ausência (a voz off, o trabalho com o tempo como uma dimensão
que combina os planos em contextos diferentes, fragmentários) que suportam suas
mais variadas configurações. News from Home é ao mesmo
tempo um filme experimental sobre as possibilidades do filme como estrutura e
um catálogo descritivo dos objetos que dividem, seccionam e cristalizam o Eu e
o mundo. É um filme de interstício: intervalo, ponto de contato e alienação entre
a palavra e a coisa, entre a durée subjetiva da rememoração familiar e
a objetividade hopperiana de uma cidade que se ergue diante de nós (e finalmente,
dentro de nós).
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