in loco - cobertura dos festivais
Neil Young Journeys, de Jonathan Demme (EUA, 2011)
por Fábio Andrade

Fotogenia sonora

Neil Young Journeys é a última parte de uma trilogia de concert movies feita por Jonathan Demme com Neil Young. O elegantíssimo Neil Young: Heart of Gold (2006) já circula em DVD há alguns anos, enquanto Neil Young Trunk Show (2009), segundo volume, supostamente mais cru, permanece pouquíssimo visto, com exibições pontuais em festivais. Mas basta ler algumas descrições do próprio Jonathan Demme sobre o segundo filme para percebermos que o que distingue este terceiro não é encontrado nos outros com a intensidade exclusiva que vemos aqui: Neil Young sozinho no palco, acompanhado apenas por microfone, violão, um piano, dois órgãos, uma guitarra e quatro amplificadores.

Há mais em jogo, porém, do que a extremamente significativa solidão de Neil Young no palco, em si. Diferente de Heart of Gold, que conta apenas com uma introdução de depoimentos de Neil Young e seus músicos antes de o show começar para não ser mais interrompido, Neil Young Journeys é todo costurado por uma volta de cadillac por Omemee, cidade no interior do Ontario onde Neil Young cresceu. A câmera se põe no banco do carona e acompanha o passeio, enquanto Neil Young dirige e conversa, seguindo o cadillac do irmão por um trajeto imprevisto, passando por pontos concretos ou fantasmas que marcaram sua juventude.

Esse retorno, aqui, é mais do que simples manifestação da infecção aguda dos documentários biográficos em buscarem a gênese do gênio em um lugar de origem.  Pois Neil Young Journeys filma os dois últimos shows da turnê do disco Le Noise, de 2010, em um velho teatro em Toronto. E Le Noise é um disco de desejo de juventude. Com uma configuração mínima de pedais e efeitos, Neil Young tenta construir canções eternas – canções de Neil Young – a partir de sonoridades extremamente calcadas no presente. Le Noise é um disco marcado pelo desejo de atualização, mas essa atualização só pode vir na recuperação de uma juventude – não exatamente as sonoridades da juventude do artista, mas um espírito que permanecia congelado no passado e volta hoje, entusiasmado com o presente.

Jonathan Demme é um cineasta de notável inteligência, pois a ele basta a percepção histórica do gesto de quem está diante da câmera para que ele escolha uma ou duas situações que se coloquem em consonância com esse gesto. De resto, o filme se faz quase sozinho. O peso da idade sobre o corpo de Neil Young – um peso de maravilhosa expressão e dignidade, diga-se –, dos cabelos rareando às obturações nos dentes, captadas por uma oportuna câmera presa ao microfone, se conecta com a cidade em transformação – a casa da infância que não está mais lá, as estradas já desconhecidas pela memória – e a idade imponente do próprio teatro. Mas toda essa constatação do tempo passado se esvai pelas inúmeras e memoráveis performances de Young no palco, absolutamente hipnóticas em sua entrega e de uma força cinematográfica – visual e sonora – arrebatadora.

Neste retorno ao útero, que culmina com a foto do jovem Neil Young que fita a câmera nos créditos finais, mais importante do que uma volta saudosista ao passado é o voluntarismo do espírito diante do desconhecido, a maneira intrigada de olhar para o presente e de reconhecê-lo, também, como seu tempo. Para isso, é necessária uma certa dose de anacronismo – os cadillacs, o filho na platéia, a casa que não existe mais – pois somente o reconhecimento do tempo passado pode garantir o entusiasmo com o presente. “It certainly doesn’t look anything like it did before, but I can smell it”, diz Neil Young sobre Omemee. Neil Young Journeys não é um exercício teleológico de voltam à origem, mas sim uma nova proposta de juventude, de atualidade, que passa pela simples noção de presença.

Em uma entrevista ao Chicago Tribune, Jonathan Demme é perguntado sobre o motivo de ter escolhido Neil Young como personagem desse conjunto de filmes. “Cinema”, ele responde. “Neil’s the most cinematic person that I can think of. He moves cinematically, walks cinematically, thinks and writes cinematically”. Neil Young Journeys é, no fundo, um estudo detido sobre a fotogenia, sobre como cada pequena contorção do rosto constrói essa presença tão claramente cinematográfica. Escreveu Béla Bálazs, em um dos seus muitos escritos fascinados com o close-up:

“(...) quando o gênio e a ousadia de Griffith projetaram, pela primeira vez, ‘cabeças decepadas’ numa tela de cinema, ele não só trouxe a face humana para mais perto de nós no espaço, como também transportou-a do espaço para uma outra dimensão. (...) Mesmo que tivéssemos acabado de ver o mesmo rosto no meio da multidão e o close-up apenas o separasse dos outros, ainda assim sentiríamos que de repente estávamos a sós com este rosto, excluindo o resto do mundo”.

Se, mais de um ano atrás, escrevia aqui para Cinética um artigo sobre a dimensão simbólica das personagens de Dias de Ira, de Carl Dreyer, alcançadas justamente pela dimensão física da projeção em uma tela grande de cinema, Neil Young Journeys traz sensação intimamente parecida – algo que já dava as pontas em outro bom documentário do diretor, Jimmy Carter Man from Plains . Em filme tão nitidamente crente da auto-suficiência de tudo que o diretor decide colocar diante da câmera, a Jonathan Demme cabem os louros dos artistas mais perceptivos: saber encontrar no mundo algo de extraordinário e dar-lhe a devida dimensão de uma tela de cinema.

Outubro de 2012

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