Natimorto, de Paulo Machline
(Brasil, 2009)
por Eduardo Valente Entranhas
artificiais
Desde seus primeiros momentos, seja através
da narração em off , seja através do uso hiperbolizado da trilha musical,
Natimorto deixa claro que não pretende estabelecer com o mundo que cria
nenhum tipo de relação naturalista. É um filme que abraçará o artifício sempre,
o que só se radicaliza no momento em que se instala quase definitivamente dentro
de um quarto de hotel com seus dois protagonistas (e aqui valeria mais à frente
olhar para o filme em conjunto com A Erva do Rato e Incuráveis,
trabalhos recentes que dividem com este filme muitas semelhanças – e enormes diferenças
–, a começar por seu ponto de partida dramático bastante parecido). Neste quarto,
Paulo Machline usará vários efeitos de iluminação e câmera na relação com os personagens,
inclusive com um dos usos mais ostensivos da luz de neón (ou melhor, a simulação
do seu efeito) que vemos no cinema em muito tempo. Esta
luz certamente trará lembranças do chamado neón-realismo paulista dos anos 80,
momento em que alguns cineastas expuseram o desejo de confrontar uma linguagem
realista (que consideravam “dominante” no cinema brasileiro), afirmando, assim,
que o artifício poderia revelar tanto ou mais dos dilemas humanos (principalmente
os da alma). Se pensarmos bem, não é nada muito diferente do que o personagem
principal de Natimorto se propõe: criar mundo à parte num quarto de hotel,
mundo este artificial por definição (pelo seu confinamento) e regido por regras
próprias, para fugir do que considera o realismo dolorido (e mais falso) das relações
humanas fora dele. O artifício e o teatro, aqui, seriam formas de chegar numa
verdade maior, que revelaria algo de essencial sobre as entranhas da existência
humana.
Entranhas, aliás, é palavra sempre necessária ao tratar do universo
criado nos trabalhos de Lourenço Mutarelli, autor do livro que deu origem a Natimorto.
Mutarelli, autor também de O Cheiro do Ralo, começou nos quadrinhos e chegou
à literatura num processo de depuração da sua arte, onde as imagens factuais (os
desenhos) foram sendo excluídas em troca da criação de um mundo cada vez mais
internalizado (pois imaginário, visualizado apenas por quem escreve ou lê, sem
objetividade possível de imagens). Não deixa de ser curioso que este mundo agora
seja considerado material de base para se transformar de novo em imagens (não
apenas com a concordância dele, mas com sua participação ativa – aqui como ator
principal inclusive), processo no qual, em ambos os casos, parece sempre perder
um tanto de sua força original. Sim,
porque se o mundo de teatro criado por Paulo Machline (como já havia ocorrido
antes com Heitor Dhalia no outro filme, numa relação mais próxima com a linguagem
publicitária, como já dissemos aqui)
possui uma beleza inegável, é justamente esta que acaba sendo contraproducente
ao sentido primeiro da obra de Mutarelli, de vísceras abertas do que de mais angustiante
haveria na experiência humana. Pois a artificialidade que se constrói através
do extremo domínio da forma, que o filme apresenta sequência após sequência, é
uma que, embora assumida como tal e com sentido dentro da narração, acaba criando
uma parede entre a nossa experiência e a decomposição gradual dos personagens.
As frases excessivamente literárias dos personagens ganham um peso de discurso
hiper-presente que esvazia a potência das imagens, principalmente através da forma
de sua enunciação (especialmente quando feita por Mutarelli). Como resultado,
temos uma experiência um tanto higienizada de mergulho na insanidade, a qual apreciamos
de longe, com uma distância para os personagens que nunca é o que se busca (e
encontra) nos trabalhos literários do autor. E isso não configura um problema
de adaptação, mas sim de criação, pois o belo mundo audiovisual de Natimorto
é também aquilo que define os limites de sua experiência. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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