Não se Pode Viver sem Amor, de Jorge Durán (Brasil, 2010)
por Rodrigo de Oliveira
Muito amor, pouca fé
Entre A Cor do Seu Destino e Proibido Proibir
foram vinte anos de intervalo, e agora não tivemos que esperar
muito para que Jorge Durán surgisse com seu terceiro longa-metragem,
seu terceiro filme igualmente belo e equivocado. Não
Se Pode Viver Sem Amor, de fato, mantém diálogo
muito constante com o filme anterior, mas aquilo que enfraquecia
Proibido Proibir e que, no entanto, precisava ser tomado
como efeito colateral de um cinema cheio de vontades e paixões
mais importantes que suas fragilidades, aqui acaba sendo uma cortina
de ferro que às vezes interrompe qualquer acesso àquilo
que de mais intenso o filme quer mostrar. E talvez aí resida
o maior problema de Não Se Pode Viver: o ímpeto
da exibição, do tudo-mostrar, do tudo-documentar,
justamente num filme que aposta tanto no que é invisível,
no que não se mede nem se fala em voz alta, mas cujo sentimento
é obrigatório (não se pode viver sem ele, afinal).
Há
uma conexão secreta entre os três núcleos
de personagens que ocupam o filme, algo que é do domínio
da imprecisão, mas que ainda assim é potente o bastante
para uni-los, e aí talvez Durán esteja em seu melhor.
De um lado, o físico Pedro (Ângelo Antônio),
pai doente, casamento balançado; do outro, João
(Cauã Reymond), jovem advogado desempregado e sem perspectivas
de futuro, apaixonado por uma prostituta (Fabíula Nascimento);
e no meio deles o menino Gabriel (Victor Navega Motta) e sua guardiã
Roseli (Simone Spoladore), recém-chegados ao Rio de Janeiro
para procurar o pai do menino.
É véspera de Natal e este será o grande
dia da vida de todos eles, mas se há algo que diferencia
Não Se Pode Viver de todas os filmes de multi-tramas
reunidas à fórceps é que esta reunião
não será em absoluto uma obra do acaso. No momento
em que cada um deles surge em cena, muito antes que tenhamos contato
com suas histórias pregressas e suas demandas de futuro,
cada um dos personagens recebe do filme um tratamento tão
íntimo que ele só pode significar o reconhecimento
entre desesperados. É algo da energia, da equivalência
de ondas, sabe-se lá, mas estas pessoas são imediatamente
identificadas como pares comuns e naturais, e se o acaso atuou
em algum momento foi em não tê-las feito viver próximas
umas das outras desde o início. A escolha da Praça
Mauá e da Zona Portuária como cenário não
parece nem deveria ser elogiada como um valor em si: é
que ali, longe dos cartões postais e dos clichês
sociais, os dramas parecem ser vividos muito mais abertamente,
e de maneira não-mediada pela imagem que se espera desse
tipo de contato. Não raro, os protagonistas de Não
Se Pode Viver se permitem ser feios, desanimados, até
maus, e o cinema de Durán precisa habitar um outro território
se quiser tê-los assim, do jeito que são.
Mas
além do desespero, o Rio de Não Se Pode Viver
é também o espaço do milagre, e é
aí que o filme fracassa tremendamente. O menino Gabriel
possui algum nível de paranormalidade, e com um pouco de
força mental é capaz de fazer as coisas acontecerem.
Para ver Roseli e Pedro se apaixonarem, ele faz chover. O filme,
no entanto, é incapaz de fazer o mesmo: acumula meia dúzia
de planos apressados e mal montados e coloca em cena uma precipitação
que é fruto da retórica, e nunca da fé real.
Gabriel experimenta, dentro da cena, um poder muito maior do que
o de Durán, e aos poucos essa fraqueza de espírito
vai contaminando o próprio menino (interpretado, ainda,
por um ator mirim a quem falta direção e carisma,
resultando simplesmente cômico em toda sua criação
de incêndios instantâneos e quetais). Os efeitos da
magia de Gabriel são constantemente eclipsados pela mecânica
desta mágica: é preciso, o tempo inteiro, alardear
a matéria, o jogo de superfícies, quando tudo o
que o drama do filme pede é que isto seja admitido como
natural e que se volte aos personagens para saber o que se transformou
neles, e não num quadro kitsch em que um tigre
ganha vida.
É
particularmente tocante ver como Cauã Reymond, Ângelo
Antônio e Simone Spoladore reagem às maquinações
do menino, sempre muito íntegros e francamente admirados
por esse poder que falta a seus personagens, mas que teria na
figura da criança um catalisador afetuoso e ideal. O filme,
no entanto, inicialmente tão atento a cada pequeno gesto
destes atores, será hipnotizado pelos grandes gestos da
magia, sucumbindo a qualquer possibilidade de verdade. O episódio
culminante desta travessia, quando Gabriel ressuscita o pai morto
de Pedro, marca o rompimento decisivo entre cena e filme: todos
os personagens, finalmente reunidos, nos dizem que isto que acabou
de acontecer é parte de sua realidade, ou a única
verdade possível para um grupo de desgarrados a quem só
faltava a chance de se agarrar em algo, enquanto o filme, cético,
observa o milagre como quem filma orgulhoso o show de fogos de
artifício que patrocinou. É nesse momento que Não
Se Pode Viver perde o direito de participar dessa comunhão.
E se o filme é convidado para o final feliz e nada protocolar,
parece ser mais por bondade que por justeza: talvez agora, quando
tudo acaba, essas pessoas possam ensinar a ele duas ou três
coisas sobre o amor.
Junho de 2011
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