Não por Acaso, de Philippe Barcinski (Brasil, 2007)
por Lila Foster

Detalhes que fazem diferença

Para quem acompanhou os festivais de curtas-metragens dos últimos dez anos o nome de Philippe Barcinski definitivamente não soa nada novo. No percurso entre o premiado exercício A Escada, feito ainda dentro da Escola de Comunicação e Artes da USP, até A Janela Aberta, já uma produção da O2 Filmes que competiu no Festival de Cannes, pode-se dizer que Barcinski ganhou nome como um especialista em “truques” de linguagem. Nos dois filmes citados, assim como nos seus outros curtas (A Grade, O Postal Branco e Palíndromo), o truque não deriva de uma esperteza que ilude simplesmente, como se o esquematismo se restringisse a decupagem e à montagem. No primeiro, a montagem “impede” que um homem consiga de fato subir uma escada; no segundo, uma narrativa refaz o percurso da memória de um homem – truncada, portanto – ao tentar lembrar se fechou ou não uma janela. De alguma forma a tensão infligida aos seus personagens era criada ou se resolvia por uma desestabilização de códigos como a continuidade espacial da ação de um plano para o outro ou uma subversão da ordem temporal que afeta também a construção do espaço.

Para o espectador, além das surpresas ao final da projeção, a sensação de assistir um filme muitíssimo (bem) pensado. Apesar do talento e hábil manejo do específico cinematográfico, o forte controle da decupagem e aparente excesso de formalismo poderia revelar-se pesado demais para a passagem do diretor ao longa-metragem. Mas, em Não por acaso, Philippe Barcinski utiliza o controle para construir uma narrativa rigidamente orquestrada porém aberta na sua dramaturgia e na maneira como olha a cidade e seus personagens. O controle formal existe para ser desconstruído dramaturgicamente, pois o dilema de seus personagens é lidar com o limite entre o que o homem é capaz ou não de controlar em sua vida.

Nesta narrativa dupla, uma face da moeda é Pedro, um jovem obsessivo que vive da sua paixão pela marcenaria e construção de mesas de sinuca. A outra é Ênio, um engenheiro de trânsito solitário e frustrado tanto emocionalmente como profissionalmente. Ambos terão as suas estruturas de defesa abaladas por um mesmo acidente de trânsito: Pedro perde Teresa, sua jovem e bonita namorada, e Ênio perde a mãe de Bia, filha que nunca o conheceu. O acidente é mais um ponto de contato de dois homens cuja obsessão e o seu espelhamento no trabalho forma um arcabouço visual perfeito para enfatizar a dimensão emocional do controle vivido pelos dois personagens: Pedro tenta planejar tudo de forma mais exata possível, como o movimento das bolas de sinuca, mas se percebe incapaz diante de certas situações. Ênio tenta controlar o estado caótico trânsito de São Paulo, universo este que se vê cotidianamente abalado por imprevistos capazes de afetar o corpo da cidade como um todo e, é assim que ele parece controlar sua angústia e emoções: evitando que as emoções se espalhem, transbordem.  

Deste ponto em comum, Pedro tentará superar a dor da perda ao encontrar Lúcia, uma empresária bem sucedida, e Ênio tentará se encontrar como pai com a proximidade com Bia. Para grande alívio, desta junção não deriva uma narrativa em paralelo, como se poderia esperar levando em conta a trajetória de Barcinski como curta-metragista. E, essa expectativa frustrada (ainda bem!) ilumina bem o que Não por Acaso tem de melhor. Apesar de um roteiro bem estruturado, ele é um filme que se desenvolve muito mais na chave da abertura do que de resultados derivados de sucessões lógicas. Se existe uma forte presença dos jogos visuais amparados pelos efeitos especiais muito bem executados tecnicamente, esses só têm sentido porque funcionam como correlatos emocionais e visuais dos personagens que, se até podem parecer excessivamente sistemáticos, o são somente numa primeira instância.

No início eles bastam para formar a imagem e sensações que temos dos personagens: trânsito=descontrole eminente, marcação do jogo de sinuca=necessidade de controle, re-encenação do acidente=o peso do acaso. Existe sim uma “superestrutura” porém ela está em função de uma economia narrativa que permite, por incrível que pareça, uma fluência muito maior da narrativa; ela está ali como os viadutos que permitirão um melhor fluxo dos carros na cidade.

Fato é que Não por Acaso não se resolve pelo seu roteiro bem armado, e sim pelos seus detalhes. Em certos aspectos, o filme de Barcinski aproveita o que um certo cinema narrativo americano clássico tem de melhor: personagens condensados nas suas imagens e nas coisas, sem um psicologismo profundo, genealógico e de causas e efeitos. Tudo que é visto, tanto pelo espectador como pelos personagens, ajuda a entender as motivações. Um estante feita em um dia sela um pacto entre Teresa e Pedro; pouco se sabe sobre o passado de Ênio, mas a subjetiva do seu olhar para sua ex-mulher beijando o seu marido atual é suficiente para entrever o drama de um casal; um beijo no nariz ao acordar nos faz entender sobre o amor de um casal; uma elipse temporal com as marcas de café condensa uma rotina enfastiante; um cabelo para o lado, uma personalidade nostálgica (ou saudosista); uma foto é suficiente para mudar o clima de uma cena e o crescimento de uma planta acompanha a aproximação entre pai e filha.

Nessas miudezas o código se torna sempre repleto de sentido. Ao somar o esquematismo de seus curtas ao desafio da dramaturgia imposto por um longa-metragem ele não sufocou seus personagens, mesmo quando se utiliza de “jogos”, esquemas que funcionam como metáforas/correlatos emocionais e visuais. O centro de São Paulo, com o seu trânsito e viadutos fechados em enquadramentos super formalistas, respira com planos de pessoas que vivem, circulam e andam de bicicleta. Nesta passagem para o longa-metragem, Philippe Barcinski conseguiu aliar o seu domínio da linguagem com uma história de dois homens e o momento de libertação da sua crença no controle. Assim como Pedro e Ênio foram tomados pelo acaso e a surpresa, Barcinski se permitiu levar por uma trilha sonora emocional mesmo quando os apelos muitas vezes eram racionais. Dessa “complementação” surgiu um filme simples, muito bem narrado e repleto de momentos bonitos.

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