Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar (Non ma fille, tu n’iras pas danser), de Christophe Honoré (França, 2009)
por Fábio Andrade


O pouco que resta

Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar é um filme peculiarmente surpreendente dentro da carreira recente de Christophe Honoré. Pois Honoré, cineasta que parecia firmar um estilo em cima da leveza e da mediação da arte na relação do homem com o mundo, faz aqui um drama bastante reto, onde esses traços de estilo desaparecem quase por completo. Se a tragédia surgia até aqui em seus filmes sempre contrabalanceada pelo otimismo inveterado de alguns personagens (pensemos no curioso sistema de modulações imposto pela dupla Romain Duris + Louis Garrel em Em Paris, ou na maneira como uma morte é lentamente sublimada pela surgimento de uma nova vida em Canções de Amor), aqui ele tenta lidar frontalmente com o peso. Não é exagero, portanto, dizer que Honoré faz, em Não Minha Filha, um filme notadamente mais próximo daquilo que seus críticos mais ferozes pediam dele. Vão-se embora as traquinagens, os gracejos e a consciência de adorabilidade de Garrel (que progressivamente tem sua presença reduzida na obra do diretor), e o mundo das personagens é encarado de frente em toda sua dureza, sem qualquer artifício flutuante ou mediação mais opaca. A questão é que, com isso, vai também muito de sua vida, pois a vida não é só dureza; e o que sobra é pouco, pouquíssimo.

Se Em Paris e Canções de Amor demonstravam brilho justamente em um espírito inabalável de conto-de-fadas, Não Minha Filha é tomado pelas neuroses de personagens pouco sedutores, mais repelentes do que propriamente cativantes. Muito como Jonathan Demme, em O Casamento de Rachel, ou Murilo Sales, em Nome Próprio, Honoré se vê na ingrata posição de convencer o espectador a se relacionar com uma personagem repulsiva, cujo desequilíbrio parece gerar maior irritação do que possibilidade de compadecimento. Existe, porém, uma componente particular em Não Minha Filha que produz um curto-circuito não de todo desprovido de interesse: como nós, Honoré parece também travado pelas diversas barreiras criadas pela protagonista. Sua aproximação de Lena (Chiara Mastroianni) é abalada por um constante desconforto, deixando fora do filme as trajetórias e justificativas (de comportamento e de dramaturgia) necessárias para despertar alguma empatia. Em vez disso, registra um diretor às voltas com o “outro” que deve lhe representar – como se o filme se colocasse como um cabo de guerra entre o realizador e sua personagem.

O que sai disso é um trabalho deveras desequilibrado e muitas vezes enervante, mas talvez ainda interessante justamente por esse desequilíbrio, por (assim como Abraços Partidos faz com Pedro Almodóvar) funcionar como uma espécie de documentário dessa crise, mais do que uma obra de ficção autônoma e bem resolvida. Não Minha Filha se torna, com isso, um filme sobre a tentativa de se acessar o outro. A mediação no contato com o mundo é inerente ao cinema, como é inerente a qualquer forma de representação; aqui, diminuem as camadas, e as referências de arte e cultura pop são substituídas pela inacessibilidade das próprias personagens, e a maneira como elas falam (ou deixam de falar) pelo diretor. “Divorciar é uma palavra bizarra”, diz a personagem de Marina Fois, sobre o rumo de seu próprio relacionamento. “Parece que estou falando de outra pessoa”. Em Não Minha Filha, cada plano parece servir principalmente à sensação de se estar falando de uma outra pessoa, como o garoto busca a lenda que dá título ao filme para conseguir conversar com sua mãe. Ou como, em outro momento, a conversa entre eles só poderá acontecer entre as grades da escola – acentuadas pela colocação lateral da câmera, que não permite que as duas personagens sejam vistas juntas em quadro, criando uma parede que as esconde. São momentos que Honoré parece filmar para demonstrar sua ineficiência em acessar aqueles personagens, aquelas situações, aqueles sentimentos.

Existem, porém, pequenos respiros de criatividade: as belas fotos em preto e branco que guardam o passado dos pais da personagem; um ou outro plano frontal dos irmãos que surgem como aparições misteriosas (Culpa? Dívida? Amor?) para Lena; ou a própria sequência da lenda bretã, que tem belos momentos em slow motion, e um balé de corpos instigante em tudo que ele tem de não coreográfico. Todos, sem nenhuma coincidência, falam de o que está fora do drama que é central ao filme. São momentos em que Honoré volta a olhar para um universo que domina e, sobretudo, lhe interessa, e que geram breves lampejos de engajamento com o mundo que está em tela – em vez do interesse por o que o filme testemunha à sua própria revelia. Em uma tentativa de se desvencilhar de seu universo, Honoré faz lembrar, em Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar, a cena de Em Paris em que Romain Duris fotografa a si mesmo com os olhos vermelhos, e a boca cheia de comprimidos, entregue a uma tentativa abortada de suicídio: um sujeito alijado de si mesmo, à procura de algo que ele não sabe o que é, e percebe não ter a menor necessidade de encontrar.

Janeiro de 2010

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