Carta aberta contra o uso do DVCAM e DVD como formatos de projeção
digital comercial em cinemas
Prestes a completar 35 anos de existência,
não é necessário a ninguém rememorar o papel essencial que a Mostra
de SP exerceu para a cinefilia brasileira – não cabendo nem mesmo
limitá-lo ao espaço da própria capital paulista. Da mesma forma,
ainda hoje a Mostra (assim como seu correspondente carioca, de nascimento
bem posterior, o Festival do Rio) representa um papel relevante
para todos que acreditam na importância da possibilidade de ter
acesso a algumas obras pensadas para o espaço da sala escura e da
tela grande – especialmente frente a um panorama do circuito exibidor
comercial cada vez mais restritivo e careta (e aí vale dizer que
isso está longe de ser uma questão apenas brasileira – mesmo no
paraíso cinéfilo que é a França, e particularmente Paris, este é
um assunto constantemente discutido, e que não cabe esmiuçar longamente
aqui).
Alguns diriam que a Mostra (e o Festival – e,
pior, mesmo a soma dos dois) com frequência se equivoca neste
papel de antena, deixando passar batido pelo Brasil ao longo dos
anos uma série de filmes e cineastas decisivos. No entanto, parece
claro que isso faz parte do jogo das escolhas e curadorias (embora
seja discutível que de fato se possa dizer que estes megaeventos,
dentro de seu gigantismo, tenham como valor maior de fato uma
idéia de curadoria, pensada no específico do termo), ou muitas
vezes até mesmo de circunstâncias externas ao desejo dos próprios
eventos. Até por isso, mais do que reclamar, parece fazer mais
sentido propor outros caminhos,o que tem sido cada vez mais constantemente
feito tanto por outros vários eventos anuais pelo país
(Cine Esquema Novo, Janela Internacional do Recife, Indie, Forum.doc,
entre tantos outros), como também por iniciativa de retrospectivas
ou mostras pontuais nos centros culturais (notadamente o CCBB),
que permitem recuperar vários desses “esquecidos”.
Por tudo isso, está longe de nosso interesse, como revista de
cinema no Brasil, centrar baterias contra a Mostra ou o Festival,
eventos que cobrimos com atenção e diligência a cada ano. Diminuir
sua importância seria tolo, quando não simplesmente mal intencionado,
seja no contexto histórico ou atual. No entanto, existe pelo menos
um aspecto destes eventos que precisa sim ser abertamente questionado
com a maior das urgências, por estar se tornando a cada ano mais
problemático aparentemente sem receber a devida (ou nenhuma )
atenção por parte de suas organizações. Estamos
falando da projeção digital – sim, um tema um pouco recorrente
de polêmica em alguns meios nos últimos tempos, mas que achamos
necessário trazer à tona de novo.
Isso se dá principalmente porque o tema nos parece geralmente
mal explorado, não raro levando a conclusões falsas ou à própria
diluição de uma complexa problemática, em geral por um excesso
de resmungos que terminam esvaziando os momentos em que a questão
se torna realmente crítica. Por isso mesmo, antes de mais nada
cabe limpar a área de ruídos, a começar por lembrar que, sim,
existem inúmeras maneiras de uma projeção em película ser ruim,
seja pela qualidade da cópia, seja do equipamento (e mesmo nas
salas a princípio boas, como as de que se utilizam a Mostra ou
o Festival, não estivemos livres de algumas péssimas sonorizações
e problemas graves de imagem, como um constante desfoque). No
entanto, de maneira mais generalista, em condições normais de
temperatura e pressão, inegavelmente a projeção em 35mm empresta
uma certa regularidade de resultados.
Dito isso, é mais que ponto pacífico a inevitabilidade
(e, inclusive, as facilidades) da transição para o digital. O
que está sempre jogo é de qual digital se está falando – uma vez
que não temos em nenhuma sala brasileira do circuito “de arte”
equipamentos como os que projetam hoje com perfeição, em 4K ou
2K, boa parte da programação de um evento como o Festival de Cannes
(houve no Festival do Rio deste ano uma primeira experiência com
o 2K em algumas poucas salas e filmes, assim como espaços como
a Cinemateca Brasileira ou o Instituto Moreira Salles possuem
equipamentos desta qualidade – embora pouco sejam usados com matrizes
da mesma qualidade).
Dado este panorama, há defensores, por exemplo,
da posição xiita de que seria impossível mesmo atingir uma boa
projeção com os parâmetros dos equipamentos usados na maior parte
das salas de arte brasileiras (em geral ligados à empresa Rain).
Me parece uma posição simplória, e francamente irreal. Pois, seja
no circuito comercial, seja em eventos pontuais, estes equipamentos
já deram seguidas provas de conseguir resultados bastante satisfatórios
(ainda que pudessem ser melhores). Na própria Mostra de SP, por
exemplo, é difícil imaginar que alguém tenha saído com ressalvas
à projeção de filmes como Mistérios de Lisboa, Homens
e Deuses ou Vênus Negra, para ficarmos em três casos
isolados que testemunhamos de projeções em digital, nos equipamentos
existentes regularmente nas salas, e que responderam plenamente
aos quesitos mínimos do que podemos pensar como uma experiência
cinematográfica de fruição. É importante dar este reconhecimento
pelo simples motivo de que torna menos absoluta qualquer posição
de confronto às más projeções, o que sempre as torna possíveis
de serem reduzidas a pura birra, saudosismo ou preciosismo irreal.
Mais do que fazer isto, porém, o que essa admissão
permite é tornar simples e cristalina a questão que realmente
aflige hoje nestes eventos: o problema não está nem no digital
em si (ponto pacífico), nem mesmo nas incapacidades dos equipamentos
existentes (ponto menos pacífico, mas que a nós parece óbvio).
O problema principal reside na utilização pelos eventos de formatos
de exibição que simplesmente não podem ser considerados aceitáveis
para fins de projeção em salas de cinema. O fato é que, quando
eventos de consideráveis orçamentos começam a usar salas de cinema
para exibir filmes em DVD ou em DVCAM, está se perdendo todo e
qualquer específico de excelência que a experiência cinematográfica
impõe. Está se considerando aceitável aquilo que se faz em salinhas
de condomínio ou clube, ou em cineclubes desprovidos de equipamentos
que permitam exigir algo mais. Pois nem o DVCAM nem o DVD foram
pensados para serem usados como estão sendo hoje: para uma expansão
tamanha de suas imagens de maneira a ocupar a tela inteira de
um cinema, onde obviamente revelam todas as suas impossibilidades
de extensão de espectros de cor, de contraste, de brilho, exibindo
algo que é pouco mais do que um “parente distante” do filme original
(e aqui vale a ressalva: falamos dos filmes pensados e finalizados
originalmente em 35mm ou HD, pois claro que há – poucas – exceções
onde a matriz do próprio filme é pensada para parecer de baixa
resolução).
É verdade que existem aqueles que colocam o problema
desta exibição em formatos não profissionais em outros termos.
Por exemplo, financeiros, afirmando que o verdadeiro absurdo é
que cobrem o mesmo (alto) preço de ingresso para ver um filme
em DVD ou DVCAM do que por um filme em 35mm ou HDCam – citando
exemplos como o do CCBB, que não cobra ingresso por projeções
digitais. Nos parece uma posição tola, porque tanto se contenta
com pouco (o CCBB deveria era prover um bom equipamento digital
de projeção, o que não tem), como faz da experiência cinematográfica
um problema econômico ao invés de artístico – podem estuprar uma
obra de arte, desde que cobrem menos por isso. Existem ainda os
que dizem que o azar é dos eventos pois, ao fazerem isso, estariam
dando um tiro no próprio pé e afastando o cinéfilo do cinema –
já que para ver filmes em DVD ou mal projetados, hoje eles contam
com outras possibilidades (eminentemente via download). Também
parece posição tola, por considerar que essa outra hipótese (a
de todos vermos os filmes em casa nos computadores ou TVs), seria
equivalente à possibilidade de ver uma boa cópia na tela e no
ambiente do cinema.
Finalmente, existe a questão da posição muitas
vezes tomadas pelos próprios eventos, às vezes abertamente: a
de que a maioria dos espectadores não reclama por não sentir a
diferença. Uma afirmação maldosa, porque supõe algo (que não sintam
a diferença) a partir de um dado que não o afirma (a ausência
de mais reclamações), já que simplesmente a maioria dos espectadores
não dispõe dos conhecimentos mínimos para localizar o incômodo
(seria um problema do filme? do projetor? do cinema? do meu olho?),
e portanto reivindicar uma solução a contento. Mas, pior: é uma
posição de enorme dissimulação, por fingir ignorar que o principal
ponto é que aqueles que são responsáveis pela projeção sabem que
estão oferecendo um serviço abaixo do mínimo que deveriam, escorando-se
na ignorância disso por parte dos espectadores – e ao fazer isso,
igualam-se em postura a qualquer dos piores comerciantes que adulteram
produtos contando que vão passar despercebidos. O gigantismo desejado
dos números (sempre as matérias começam citando os trocentos filmes
exibidos) não pode mais justificar certas impropriedades.
Assim, nos parece importante deixar claro que
é uma questão moral exigir dos eventos que parem de se escorar
atrás de desculpas e justificativas, e tomem a posição inequívoca
de reconhecer que DVCAM e DVD não são formatos aceitáveis de
projeção em salas de cinema. Que exijam dos produtores dos
filmes que exibem em digital a qualidade mínima que uma HDCam
(ou equivalentes em formatos de arquivos) empresta – algo que
vários realizadores brasileiros sabem na pela ser exigido pelos
principais festivais de cinema do mundo. Cabe ao festival sempre
impor sua exigência de qualidade, e se não for possível exibir
nestes formatos, é preferível sim que não se exiba o filme – porque,
de fato, não se está exibindo. E qualquer negociação ou comprometimento
com menos do que essa posição é claramente falaciosa – e tão mais
grave porque todos os envolvidos sabem disso.
Na Cinética, faremos nossa parte a partir
do ano que vem, repetindo algo que fizemos quando da exibição
de Still Life, de Jia Zhang-ke na Mostra em 2007 (quando
este tipo de projeção ainda era exceção): não mais cobriremos
ou analisaremos filme algum exibido nestas condições, anotando
sempre com clareza o fato motivador desta abstenção.
Não se trata aqui de querer apenas “marcar posição”, nem muito
menos de tolamente achar que ao fazer isso temos de fato algum
efeito prático no público destes eventos: se trata de afirmar
as coisas como são, e em respeito à arte do cinema (que nos move)
considerar que os filmes exibidos assim de fato não estão sendo
exibidos para o espectador no cinema – e, portanto, não cabe analisá-los
como se estivessem.
* * *
Finalmente, para que todo este texto não pareça
passear num abstrato, achamos importante listar aqui todos os
filmes que presenciamos sendo exibidos em condições abaixo das
mínimas aceitáveis, ao longo das duas semanas da Mostra. Fazemos
isso principalmente para notar que não foram apenas filmes pequenos
e desconhecidos, documentários de estética precária, que receberam
este tratamento, mas alguns dos destaques da programação. Todos
estes filmes, reafirmamos, não foram de verdade exibidos na 34ª
Mostra de SP:
- Carlos,
de Olivier Assayas (para além da qualidade de sua DVCam, o filme
ainda foi exibido no Unibanco Arteplex em formato errado de tela,
com os personagens todos esticados e anamorfizados; mesmo assim,
pasmem, ganhou menção especial no prêmio da crítica, mostrando
que não são só espectadores comuns que não dão importância ou
atenção a essas “bobagens”)
- Caterpillar, de Koji Wakamatsu (premiado
em Berlim, esta foi unanimemente considerada a pior qualidade
de cópia digital exibida em toda a Mostra)
- Se Quiser Assobiar, Eu Assobio, de Florin
Serban (num segundo lugar próximo, este filme romeno também premiado
em Berlim)
- Ultraje, de Takeshi Kitano (competidor
em Cannes, um dos cineastas mais reconhecidos da Mostra, ainda
assim foi exibido lamentavelmente – mesmo tendo sido previamente
anunciado como em 35mm)
- China, Asas do Desejo, Expresso
da Meia Noite, Paris Texas (todos exibidos a partir
de DVDs, tornando particularmente lamentável o cardápio retrospectivo
da Mostra nesse ano)
Além destes, uma série de outros filmes “menores”
foram “não exibidos”. Na maior parte deles, tivemos mesmo que
nos retirar da sala tal a impossibilidade de se relacionar com/julgar
esteticamente os trabalhos. Sobre alguns outros poucos, acabamos
escrevendo mesmo assim, em geral por considerarmos que o trabalho
estético não era o principal foco do trabalho – mas esta postura
precisa e será repensada, já que arte sempre implica uma forma,
logo uma estética. Segue nosso pequeno balanço parcial, já que
estivemos longe de comparecer a todos os que devam ter tido este
problema (até por termos começado a evitar qualquer filme exibido
em digital depois de um determinado momento). Todos eram filmes
que nos interessaria muito ter visto, mas só se pudesse ser de
verdade:
- Distantes Juntos
- Depois de Todos Esses Anos
- Sem Pé Nem Cabeça
- A Casa de Palha
- Picco
- O Mito da Liberdade
- A Terapia
- Minha Perestroika
- Arcadia Lost
* * *
No Festival do Rio, ainda não tínhamos começado
a sistematizar essas observações e anotações. No entanto, mesmo
celebrando a estréia do uso de um projetor 2K em uma sala, o que
permitiu belas projeções digitais de filmes como Essential
Killing ou mesmo o vilipendiado Carlos, pudemos anotar
pelo menos algumas projeções que, segundo nosso critério acima
mencionado, no futuro serão desconsideradas na revista como sequer
tendo acontecido. Foi o caso, por exemplo, de Amigo, de
John Sayles; Terça Depois do Natal; e Boca do Lobo.
editoria@revistacinetica.com.br
|