sessão cinética
Nanook, O Esquimó (Nanook of the North),
de Robert Flaherty (EUA, 1922)
por Thiago Brito

Alimento para a cena

Escrever sobre Nanook é um trabalho complicado. Primeiro por se tratar de uma obra quase mitológica, sobre a qual muito - mas muito mesmo - se pensou, escreveu, refletiu. Assim, para se tentar uma nova abordagem, uma nova relação, em pleno 2011, sem se encontrar repetindo o que já foi dito à exaustão, é preciso arriscar um exercício na ignorância; buscar retirar de sobre o nome "Nanook do Norte" trilhões de palavras e conceitos que aparecem, quase que espontaneamente, quando nos sentamos para assistir Nanook (e quantas pessoas de fato fazem isso? Este filme, de tão falado e conhecido, pode ter sofrido a mesma síndrome das grandes obras literárias). Nanook: o filme seminal inaugurador do documentário; Nanook: o filme-síntese de um período na história cinematográfica. A aventura do filme se converte na aventura do crítico e do espectador.

Realizado em 1922, o filme se estabelece em um período especialmente fértil da era do cinema mudo, uma época em que este - se me permitem a rudeza - formato de exibição e produção caminhava para um apogeu impressionante de sofisticação artística. A década de 20 é o período em que o cinema mudo explode em diversidades e caminhos, onde, se de um lado vive-se um período de vanguardas e experimentações com a potencialidade sugestiva e representacional da imagem cinematográfica, do outro, delineia-se, bastante conscientemente, uma forma de exposição calcada no ato narrativo. Uma das grandes questões que começam a aflorar é a possibilidade de se trabalhar um filme somente a partir da potencia de sua imagens, eliminando de vez a questão dos letreiros (ver a Ultima Gargalhada, de 1924, de F.W Murnau). Flaherty, por outro lado, encontra-se diante de uma possibilidade única de construção fílmica: ao se deparar com os esquimós, deve buscar uma forma que dê vazão ao ritmo do cotidiano de seus habitantes, ao mesmo tempo em que construa claramente um arco narrativo organizado, claro e expositivo.

E é com grande consciência que ele elenca dois elementos como base para seu filme: de um lado, a organização a partir da idéia de uma cena, de um mundo que se espraia diante da câmera e que vive para ela, de uma visão direta, face a face, com suas manifestações; do outro, um fio condutor propulsor de toda saga: a alimentação. Dada a sua situação excludente do resto da civilização, os esquimós passarão todo o filme à procura do que comer, de modo que seu cotidiano nos é apresentado em torno desta grande questão. É para comer que vão ao comércio; é para comer que vemos as diligências caçadoras de Nanook; é para comer que irão caminhar, acampar, criar um iglu. E, para cada uma destas sequências, o correlativo irmão: a cena.

Flaherty não chama seu filme de documentário. Seu filme é um filme, tanto quanto, digamos, Intolerância (D. W. Griffith, 1916). E assim ele se propõe a construí-lo: a imagem de Nanook não compartilha um estatuto "janela para o mundo"; não é o olhar observador aquele que de fato impera. Claro, existe ali a fruição do observador, a câmera também se posiciona de forma a poder olhar e dar a ver os acontecimentos que fluem diante dela. Mas o que é impressionante é a noção de que seria necessário uma consciência de cena, de que os esquimós soubessem ser filmados e se apresentassem para a câmera, para o homem-branco. Os acontecimentos são vistos mais frontalmente do que enviesados, a câmera é presente no espaço e seus protagonistas agem para ela, mostram-se a ela. Assim é o sorriso do filho de Nanook, é assim que Nanook enfiará os dentes para matar os peixes, é assim que construirão o iglu: para a câmera, e de uma maneira clara, de modo que cada detalhe possa ser captado.

A cena cinematográfica é um ponto de inflexão. Ela diz respeito tanto ao mundo que se "descortina" diante dela, quanto ao ponto de partida (a câmera). E é ainda mais instigante perceber esses meandros da tradição documentária. Com Nanook, temos uma proposta documental que é, a um só tempo, relacional e narrativa. Os protagonistas devem se engajar, devem participar e criar com o direto a cena, mas ela parte de uma vontade centralizada nas mãos do realizador: a cena é a objetivação de uma visão do homem-branco. É Flaherty quem constrói o espaço e a narrativa, é ele que sabe quem assistirá este filme, como será distribuído e, portanto, como o filme deve se apresentar. Aqui, o documentário não é a grande janela para um momento único de graça (como na obra dos irmãos Lumière), ou um descortinar do véu das aparências para enxertar nossos olhos diante da crueza do real; Flaherty deseja narrar a saga de um povo para o seu povo e, para isso, elegeu um herói: Nanook, o Urso.

Com isso, vemos também o nascimento de uma outra característica importantíssima para o documentário: a personalidade humana. Se hoje mesmo saíssemos de nossa sessão e fossemos diretamente ao cinema mais próximo, e dentre sua programação encontrássemos um documentário, a probabilidade de que ele seja centrado em alguma figura humana principal é quase certa. Nanook of the North descobre, com suas artimanhas, a força da personalidade humana, uma força evidentemente construída - a admiração de Flaherty por Nanook é mais do que clara - mas, nem por isso, inferior em sua perspicácia e intuição. Talvez, Nanook possa não ser o nascimento da tradição documentária, ou mesmo seu expoente mais bem acabado dos anos 20, mas ele é, sem sobra de dúvidas, o momento em que o cinema encontra-se diante de um de seus temas mais importantes, talvez a sua real vocação: o homem, seu rosto, seu olhar, traquejos, e sua infinita capacidade de nos intrigar. Nanook nos olha e sorri: seria o cinema um grande espelho do homem para o homem?

Novembro de 2011

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