sessão cinética
O
Nascimento do Amor (La naissance de l'amour), de Philippe Garrel (França,
1993) por Filipe Furtado
Garrel
em preto e branco
Os melhores filmes de Philippe
Garrel costumam ser os filmados em preto e branco, como este O Nascimento do
Amor. É como se a ausência de cores acrescentasse um elemento a mais a estas
cenas ao mesmo tempo banais na aparência e que carregam sempre um peso enorme
em cada ação. O preto e branco, em Garrel, tem pouco do fetiche que acompanha
a grande maioria dos filmes contemporâneos que lançam mão do recurso; oposto a
isso, ele acrescenta uma camada a mais a estas imagens. O drama de matrimônio
de O Nascimento do Amor ganha um caráter extra, abstrato e mesmo simbólico. Há
uma tensão na obra madura de Garrel: em 1979, quando resolveu trocar os experimentos
radicais do começo da carreira por filmes que, ao menos na superfície, se assemelham
a narrativas (geralmente mais um conjunto de situações e/ou dilemas do que uma
narrativa típica), ele nunca rompeu de vez com a abstração de filmes como A
Cicatriz Interior e Les Hautes Solitudes. De alguma forma esta ficava
lá, alocada no fundo das suas composições, querendo pular ao primeiro plano. Os
melhores filmes “maduros” de Garrel se aproveitam bem destes dois elementos. De
um lado, está a observação cuidadosa com que recria um universo de fundo sempre
quase autobiográfico, em que quase todas as ações sugerem o peso da experiência
vivida. Do outro, certo distanciamento da ação, a forma como pequenos atos nos
são por vezes apresentados de forma descritiva, como certos diálogos não escondem
que vieram de um roteirista, como mesmo seus títulos carregam um caráter abstrato
(O Nascimento do Amor, O Vento da Noite, A Fronteira da Alvorada),
ao mesmo tempo claro e muito distante da ação. O Nascimento
do Amor é ele próprio uma coleção de cenas que sugerem uma série de momentos
íntimos, captados com um frescor e intensidades vistos só no cinema de Maurice
Pialat e Jean Eustache. Um muito abstrato filme pedagógico (no sentido rosseliniano)
a partir das próprias experiências do autor, de ir de um artista experimental/ativista
político a uma existência classe média alta de cineasta de “certo sucesso”. O
que torna O Nascimento do Amor (e de um modo geral a maior parte da filmografia
de Garrel) um filme especial é como estes dois lados nunca estão em conflito,
mas
em diálogo constante, intensificando um ao outro. Pensemos num momento como quando,
logo no começo, Paul questiona Markus sobre o momento em que conhecera Helene,
e este reage com certa surpresa e resguardo ao inquérito do amigo. É a seqüência
chave de toda a ação e um destes momentos em que Garrel é ao mesmo tempo o mais
preciso dos observadores e o professor que nos apresenta um exemplo. Tudo ali
é de uma intimidade desconcertante (Jean-Pierre Léaud foi poucas vezes tão bom
e menos Léaud do que quando Markus se vê diante da questão do seu amigo) e ao
mesmo tem um valor meramente figurativo: só dois corpos na rua numa imagem em
riquíssimo preto e branco. O grande valor de O Nascimento
de Amor é ser o concreto e o abstrato, a imersão completa nas suas interações
e a discussão cuidadosa do seus problemas. Voltemos à fotografia preto e branco:
como já dissemos, salvo por Não Posso Escutar Mais a Guitarra, todos os
melhores filmes narrativos de Garrel optam por ela e cada plano neles respira
sobre a mesma a lógica do pobre Markus, pego de surpresa pelo inquérito do amigo.
A ausência de cor (a despeito da riqueza de tons) reforça que aqueles dois homens
são, ao mesmo tempo, somente e muito mais que as suas ações. E estas imagens,
de uma pureza ímpar, parecem ser captadas por alguém que acredita possuir um olhar
que chegou antes. Fevereiro de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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