Mutum, de Sandra Kogut (Brasil/França, 2007)
por Cléber Eduardo


Efeito-vida

No primeiro plano de Mutum, nome de um lugarejo mineiro onde a câmera arma seu acampamento, temos uma câmera subjetiva. A imagem é o ponto de vista de alguém situado em cima de um cavalo, com a câmera a enquadrar a crista do animal, enquanto se sente o sacolejo do trote. No plano final, três cavalos se distanciam da câmera, trotando em direção ao fundo do quadro. O filme fica enquanto eles partem. Na primeira imagem, a câmera chega com um personagem, está com ele, na verdade é seu próprio olho. No desfecho, o protagonista vai embora. A câmera o abandona a sua própria sorte ou, como prefere o crítico, deixa-o emancipar-se da instância narrativa, permitindo caminhar sem anjos da guarda a observá-lo. Nos dois momentos, vemos os cavalos.

No ambiente onde o filme se planta, o cavalo é o meio de transporte com o qual se chega e se parte, com o qual se move pelo espaço. Pois será para mostrar a necessidade do deslocamento para seu protagonista mirim, o menino Tiago (Tiago da Silva Mariz, um dos estreantes do elenco, escolhido após testes com mais de mil crianças), que o filme primeiro se instala no espaço dessa figura central, nas experiências desse garoto com a natureza, com seus irmãos, com a observação de seu entorno. Vemos brincadeiras, sorrisos, lágrimas, olhares perdidos e atentos, relações com a natureza, afetos em família. Há também as tensões nessa família, gestos de autoritarismo, uma enfermidade tiro e queda. Mutum é construído como observação do ambiente, dos rituais, da interioridade expressa na superfície de seu protagonista e na relação de tudo isso com a dissolução familiar. Uns partem, um morre, outros ficam.

Para mostrar a necessidade de abandonar o lugar de origem (essa recorrência permanente nos últimos 12 anos no cinema brasileiro, conforme esboço nos artigos “Demanda de Exílio” e “Os Novos Exilados”), Mutum  primeiro evidencia a permanência e a conexão entre personagem e lugar. Sem uma temática a saltar aos olhos e ouvidos, sem uma disposição de denunciar ou revelar qualquer coisa, sem sede de documentar ou de estetizar a aparência documental, a diretora Sandra Kogut trabalha no registro da sutileza, da delicadeza e da concentração nas experiências, produzindo vida e realidade em vez de tentar representá-las com organização dramatúrgica.

Não significa que não haja construção, não haja planejamento, não haja ensaio, mas sim que isso não se evidencia. O efeito de naturalismo das preparações de Fatima Toledo, pela primeira vez, anula qualquer sinal de performance da autenticidade. Em vários momentos, parece não haver câmera. Nem atores. Mas a câmera está lá, movendo-se até, mas sem erguer a mão. Age como se estivesse conectada as ações e aos ambientes, muitas vezes colocando os atores em algum dos cantos do quadro para mostrar no outro os índices de verdade cenográfica, mais uma contribuição de Marcos Pedroso, valorizado com discrição oriental por Mauro Pinheiro Jr. E não custa lembrar que o mesmo diretor de fotografia, em sertão mais ao norte do Brasil, esteve atrás da câmera de Cinema, Aspirinas e Urubus – uma referência inevitável, mas do qual Mutum se diferencia, se não por quase tudo, certamente por ser um filme que fica onde começa, ao passo que, no road movie de Marcelo Gomes, a câmera está sempre de passagem pelos lugares ou fazendo pouso.

Embora pise em solo bastante percorrido e demarcado pelo cinema brasileiro moderno, e possamos estabelecer possíveis relações de Mutum com Menino de Engenho, de Walter Lima Jr, a diretora carioca Sandra Kogut não diz amém aos referenciais legitimados, nem à representação dos universos do sertão pelo Cinema Novo, nem a poesia da prosa de João Guimarães Rosa (a matriz do filme, com “Campo Geral”). Sandra procura inserir-se na percepção dos indivíduos e colar-se a sensação de seu protagonista em vez de ilustrar e demonstrar qualquer coisa. Quer o fenômeno, não sua explicação. Quer a vida e não a linguagem. A ausência de linguagem, talvez. Seria esse mais um exemplo da vertente mais fenomenológica do cinema, que investe na observação de momentos e não na relação entre as imagens? Seria esse filme de co-produção francesa, da Arte com a Videofilmes (Walter Salles o apresentou na Quinzena dos Realizadores em Cannes), um projeto consciente de suas sintonias, disposto a inscrever-se em uma dramaturgia audiovisual vinculada a retenção da experiência?

Só em parte. Porque as relações estão lá, mas o filme se empenha, em nome da força da experiência, em não explicitá-las. Sandra só se atrapalha um pouco quando o aparente deslocamento de Tiago é relacionado em alguma medida a uma miopia literal e metafórica. Os óculos do médico, indicialidade de uma “assistência” social, farão o menino ver maior. Mais longe. E em detalhes. Se com a visão limitada o garoto já sente mais e melhor, tornando-se o elemento diferenciado daquele universo, que se relaciona com o mundo menos com palavras e mais com gestos e olhares, a possibilidade dos óculos e dos estudos tem ares de libertação. Como tem sido recorrente nos últimos anos, é dada uma porta para os personagens superiores a seus lugares e suas vidas, que “merecem coisa melhor”, como também se pode ver em Abril Despedaçado, de Walter Salles, ou em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, O Céu de Suely, de Karim Ainouz, ou ainda em Os 12 Trabalhos, de Ricardo Elias.

Filme atento aos sons e econômico nas palavras, atento aos gestos e sóbrio nas ações, empenhado em deter-se no mínimo sem estilizá-lo ou convertê-lo em conceito estético, sem transformá-lo em sinônimo de duração amplificada ou laboratório de linguagem, Mutum procura olhar e ouvir sem pedir para ser olhado ou ouvido. E olhar não significa investir na duração e no plano estático. Olhar é reter algo de uma delimitação do espaço estabelecida pelo enquadramento. O que há para ver lá? O que há para sentir? Eventualmente, um sorriso. Freqüentemente, uma expressão, uma preocupação, uma nuvem que atravessa os olhos, um pensamento. Sandra só tem a superfície de Tiago, mas, quando se detém nele, nos dá a ver para além da imagem. Não há incompatibilidade entre a busca da interioridade e a observação de ações e lugares como aqui se faz.

É possível o espectador chorar e sorrir, mas não é forçado a isso, não é  sequestrado e tratado como refém pelos procedimentos dramáticos, porque o estímulo em Mutum  é tênue e convicto na sensibilidade. Nada de seqüestros da emoção. O registro é de um convite à participação em um mundo distinto. Será preciso se deter nas imagens antes das imagens se deterem em nossas retinas. Sandra Kogut parece ter a consciência, para alívio sincero, que, se o mundo dispersa e dissipa nossa percepção, será necessário inverter a operação sensorial. O cinema seria essa válvula de subversão de nossa relação com o mundo cotidiano. No lugar de acúmulo, vemos o mínimo. No lugar da velocidade, a cadência. Imersão. Concentração. Uma busca pelo efeito-existência.

Sandra Kogut talvez tenha encontrado na prática, nos efeitos de seu procedimento, o sentido íntimo da mise-en-scène: a colocação em quadro da vida. Esse é um efeito bastante perseguido, motivo de frustração de Zavattini em relação ao neo-realismo (nunca cumprido enquanto prática de um conceito), inspiração para a defesa da ontológica vocação realista do cinema para Bazin. É verdadeira a possibilidade de se chegar a esse “efeito-vida” sem a demonstração do esforço para tal? Como obtê-lo? Será imprescindível habilidade e preparação, abertura para imprevisto e controle, conceito e intuição. Sandra Kogut e seus colaboradores parecem ter somado tudo isso em Mutum.

Setembro de 2007

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