in loco - cine ceará 2010
A Mulher Sem Piano (La mujer sin piano),
de Javier Rebollo (Espanha/França, 2009)

por Fábio Andrade

Proto-autor

Não precisamos de mais de dois ou três planos para saber exatamente onde A Mulher sem Piano vai nos levar: planos fixos; atuações quase robotizadas; composições extremamente marcadas; um cromatismo fortemente delimitado; isso tudo para montar um pequeno drama silencioso sobre a incomunicabilidade. Javier Rebollo se instala, aqui, no cinema de autor mais superficial, usando todos os códigos de uma suposta quebra de transparência para tratar dos mesmos temas de sempre, com os mesmos respiros de humor que se tornaram marca do “gênero”.

Nada disso faz com que A Mulher sem Piano seja um filme sem virtudes, muito menos enfadonho de se assistir. Há, sem dúvidas, um domínio claro da composição do espaço, um talento esporádico para boas gags de montagem e, principalmente, um controle notável do universo que ele produz para a tela – com a sua predominância absoluta de azuis, onde as poucas pontuações de vermelho vêm com inegável força simbólica. Mas assusta que Javier Rebollo não só trabalhe um repertório estrutural de forma indiscriminada e acrítica, mas também faça de A Mulher sem Piano uma espécie de colcha-de-retalhos de pedaços de outros filmes – do que a semelhança do título com o de A Mulher sem Cabeça, de Lucrecia Martel, é apenas a evidência mais gritante. Aparentemente, a referência mais acabada está no Policial, Adjetivo, de Corneliu Porumboiu, de onde Rebollo parece tirar o rigor não exatamente belo dos enquadramentos fixos, um clima de espera e esvaziamento sonâmbulo, e também seus momentos cômicos – que aparecem em alturas muito próximas nas duas projeções, incluindo aí um final especialmente forte.

Dramaticamente, A Mulher sem Piano é como uma atualização de Desencanto, de David Lean (filme que inspirou, por exemplo, Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-wai), onde o desejo de um adultério acomete uma dona de casa, sem que seu marido saiba do que se passa. Mas o mais assustador é perceber como Javier Rebollo se apropria, sem muito rodeios, de ao menos três filmes de Chantal Akerman. De Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles vem o esquadrinhamento em tableux da rotina de uma dona-de-casa; de O Homem com a Valise vem não só o objeto central e o tom do humor, mas também uma maneira extremamente próxima de decupar um apartamento, priorizando as portas e molduras aos cômodos de fato; e de Do Leste temos a mais explícita apropriação, recriando – de forma nada justificada pela trama – o longo travelling que mostra os diversos bancos em um terminal de transporte.

O desejo de se firmar como um autor de algum radicalismo vem escorado em referências bastante automáticas, como se o diretor colocasse vinte redes de proteção um metro abaixo de onde o filme realizaria seu salto mortal. Não há muitas dúvidas de que Rebello quer construir um universo próprio – embora este mesmo não esteja distante o suficiente de um Aki Kaurismaki, ou do próprio Porumboiu, para esboçar luz própria – mas sua insegurança é tamanha que o leva a criar esse autor-Frankenstein, como se a recriação de cenas que poucas pessoas na platéia terão visto (em dias de hoje, nem tão poucas assim) pudesse imediatamente agregar valor ao filme, evitando que o esvaziamento controlado descarrilasse para o vazio absoluto. É quando o cinema da suposta depuração vive o parodoxo da derivação.

Junho de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta